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ROCK O CASO KAFKIANO (OU BUÑUELIANO) DA RÁDIO CIDADE


Muita gente não gosta quando críticas a FMs comerciais "de rock", como a 89 FM paulista - que celebrou 30 anos ontem, mas anda desacreditada porque escancarou demais na deturpação da cultura rock - e, sobretudo, o arroz-de-festa atual, a Rádio Cidade, e fica dizendo ou fazendo desaforos reacionários.

A situação ficou surreal, mesmo. Cultura rock, no Rio de Janeiro, não é mais sinônimo de rebeldia, de ativismo, de contestação, de navegar contra a maré. Virou sinônimo de seguir a corrente, ser mais um do rebanho, ser uma marionete do sistema, cordeirinho do mercado, a aceitar pagar caro para comer um lanche ruim num evento de rock, etc etc.

Se parte dos roqueiros autênticos está assim nessa onda de "vamos respeitar a Rádio Cidade", mal escondendo sua insegurança em ver o mercado roqueiro prosperar sem essa canastrice eletrônica, então a situação está muito, muito preocupante.

A Rádio Cidade virou um caso digno de obra literária de Franz Kafka ou do cinema de Luís Buñuel, tamanha a sua situação surreal que desafia a lógica, diante de um público roqueiro que se comporta como se estivessem saído de uma sessão de hipnotismo.

Os ouvintes da Rádio Cidade capricham na cara feia - eu vejo os caras sintonizados nos 102,9 mhz e quase todos são mal-humorados ou irritadiços - , porque sabem que não têm a rebeldia natural do rock e também não são levados a sério sequer pelos roqueiros mais-do-que-autênticos que ainda conseguem questionar o "sucesso da Cidade".

E por que a Rádio Cidade virou um caso surreal, uma peça kafkiana-buñueliana? Simples. É porque a Rádio Cidade constrói sua reputação com uma história muito diferente da sua trajetória original, algo que se mostra muito tendencioso, oportunista e, definitivamente, canastrão.

Não sou contra rádio de rock nos 102,9 mhz, mas o ideal teria sido que o antigo Sistema Jornal do Brasil tivesse criado uma rádio do zero, com uma equipe especializada, com locutores realmente roqueiros e sem vozes de panacas, e repertório abrangente tanto quanto ao rock mais novo quanto para o rock mais antigo.

Seria mais honroso o Sistema JB declarar o fim da Rádio Cidade que criaram em 1977, afirmando o fim de um ciclo, que o interesse passou a ser outro e decidissem criar uma rádio de rock do zero, nova, diferente, sem os ranços e trejeitos de rádio pop "só de sucessos".

Se a Rádio Cidade tivesse sido extinta em 1995, teria sido um fim muito mais honroso. Prefere-se que algo se encerre de cabeça erguida do que apelar por uma continuidade confusa e sem sentido. Nem sequer o nome da razão social da emissora, Rádio Jornal Fluminense, foi aproveitado para substituir a marca Rádio Cidade, que não faz sentido algum.

Em vez disso, o que se vê é uma rádio à deriva, oscilando de um lado a outro, ora se comportando como pop, através de seus locutores e programas ridículos e nada roqueiros como Hora dos Perdidos e Rock Bola (isso quando até Neymar prova em definitivo que futebol não é esporte rock'n'roll), ora querendo ser mais radicalmente roqueira.

É algo bem Dr. Jeckyll e Mr. Hyde. A animação festiva dos programas de besteirol, dos locutores engraçadinhos mesmo quando agora falam calminhos, dos fundos musicais de tecno (?) que acompanham as locuções, contrasta com toda a pretensão do "Rock de Verdade" e com aventuras de patrocínio semelhantes a quando a Cidade tentou patrocinar uma banda com o Wishbone Ash.

Wishbone Ash é daqueles grupos de rock clássico que a Rádio Cidade "nem a pau" tocaria, por não ter sido um referencial de sucesso e ser uma banda de hard rock quase progressiva. Bandas "difíceis" de rock, como esta, Gentle Giant, King Crimson ou músicos como Roy Buchanan e Rory Gallagher (não, não era tio dos caras do Oasis!), são pedras duras para a mentalidade gelatinosa da Cidade.

Não bastasse essa postura hesitante e esquizofrênica, onde programas do molde da Jovem Pan FM se alternam com tentativas de tocar algo "mais roqueiro", o dado surreal da Rádio Cidade culmina com o fato de que a emissora estará prestes a completar 40 anos renegando seu próprio passado.

Em tese, um nome pouco importa. Mas o que chama a atenção é que o rock estava a todo o vapor e a Rádio Cidade nunca assumiu o rock como seu compromisso original. Nem para competir com a Eldo Pop e a Fluminense FM a rádio surgiu, por que ela é que tem que ser agora a âncora de um mercado roqueiro que na prática soa confuso, postiço e superficial?

Os roqueiros autênticos mais influentes tentam a "política da boa vizinhança" porque acreditam, com boa-fé, que a Rádio Cidade firmará o mercado e esses roqueiros outsiders aproveitarão para mostrar o diferencial deles, como se o "rock comercial" pudesse abrir as portas para o rock autêntico e mais alternativo.

Mal sabem eles que mercado é lobo comendo lobo e o que a Rádio Cidade vai fazer é parasitar o que webradios ou emissoras de rock clássico estão fazendo e plagiar seus formatos, como um oportunista que nunca cria mas têm a habilidade de copiar descaradamente as façanhas dos outros.

Isso o pessoal não percebeu, e essa "cultura rock" que eu vejo, com gente comportadíssima e cordeirinha botando língua pra fora, fazendo sinal do capeta e dizendo "Rock na veia, véio", mais parece um subproduto desse ufanismo carioca para o Rio 2016 do que de uma tentativa de revalorizar a hoje enfraquecida cultura rock.

Além disso, que revitalização se esperará de uma rádio, que, só pelo quadro de locutores da "escola Jovem Pan" e coordenada por um ex-locutor da antiga Beat 98 (dedicada a funqueiros, "pagodeiros" e "sertanejos"), um tal de Van Damme, cuja única "experiência no rock", diga-se de passagem, foi tocando os ridículos "sertanejos universitários".

Vamos aceitar uma rádio assim? Que rádio do "rock de verdade" se espera para uma emissora cujo histórico original nada tem a ver com o rock e cuja equipe não é especializada em rock, coordenada por um locutor de funqueiros e "sertanejos" e cujos demais locutores estavam na rádio quando ela ainda usava o nome Jovem Pan?

Vejo jovens sintonizados na Rádio Cidade, achando-se "roqueirões" sem ter ideia do que estão ouvindo. Eles se contentam em ouvir, nos 102,9 mhz, uma sequência qualquer nota desde que seja com guitarra, baixo e bateria. Não dá para conversar com esses ouvintes sobre rock. Eles não estão aí para o rock como cultura, rock é só uma válvula de escape para suas neuroses pessoais.

Para os ouvintes da Rádio Cidade, Bon Scott e Brian Johnson do AC/DC são a mesma coisa. Eles nem sabem 99,99% da história do rock e ficam se achando só porque ouvem uma muralha de guitarras pesadas qualquer nota. E pensam que Pink Floyd só fez "Time" e "Another Brick In The Wall Part 2", eles nem devem ter ideia quem teria sido Syd Barrett.

Gostaria que a coisa fosse diferente. Eu valorizo o rock como música. O que vejo ultimamente é uma palhaçada que a própria grande mídia apoia. Um rock caricato, feito para encher os cofres dos grandes empresários de eventos musicais, às custas de uma rádio que mais parece ser veículo interno de seus interesses. Se é assim que o rock irá firmar mercado no RJ, então a coisa vai mal.

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