Pular para o conteúdo principal

POVO MARCADO É POVO FELIZ?


A sociedade brasileira é insólita. Seus antepassados resistiram como puderam a qualquer apelo ou lei contra o trabalho escravo. Seus avós defenderam a queda de João Goulart para dar lugar a uma ditadura de duas décadas. Hoje a "banda boa" das elites do atraso - que choram feito bebês quando são assim identificadas, julgando isso "injusto", pois se tratam de elites "democráticas" - tenta parecer generosa, moderna, se achando a classe social "mais legal do planeta".

Mesmo não escondendo que, ao defender fenômenos como a bregalização cultural e o Assistencialismo religioso de católicos conservadores (tipo Madre Teresa) e do "movimento espírita", tratam o povo pobre como humanamente inferiores, a "boa" elite do atraso tenta se lançar como a pretensa vanguarda da humanidade do Brasil e até do mundo.

É uma "boa sociedade" culturalmente precarizada e superficial, que até para ouvir música se prende a obvidades, como o hit-parade estrangeiro - incluindo aquele mais específico, como o rock - , que tem o maior apetite por mídias sociais do mundo e tem uma visão do mundo cheia de erros, e é movida à idiotização cultural, ao obscurantismo religioso e ao pragmatismo de uma vida "qualquer nota".

Confundindo grandeza com grandiloquência (esta a opção da elite do atraso), essa "boa sociedade" que viaja para Paris para chamar atenção da Torre Eiffel sobre a "humanidade mais importante da Terra" que é, tem a concepção de liberdade humana das mais estapafúrdias, afinal trata-se de uma franquia obtida dos barões da grande mídia.

"Liberdade", nesta concepção, sempre tem a ideia de algo idiotizado, de exagero em certas posturas e uma obsessão em "se fazer o que quiser", nem sempre significando a verdadeira liberdade de vontade. Essa "liberdade" mais parece uma "ditadura do instinto", em que os escrúpulos da consciência humana são escravos da impulsividade, da ação irrefletida, da obsessão da pessoa em "ser diferente", em deixar de ser ela mesma para ser aquilo que a "boa sociedade" quer que ela seja.

Dentro dessa concepção nada livre de "liberdade", defendida por uma sociedade que a experiente professora e filósofa Marilena Chauí define como sociedade autoritária e violenta - capaz de agredir moralmente quem não quiser participar dessa "liberdade" do Brasil-Instagram - , de uma curtição obrigatória, de um hedonismo idiotizado marcado pela obsessão dos agitos noturnos, do fanatismo do futebol, do obscurantismo da fé irredutível, da mesmice compartilhada da mediocrização cultural.

Essa "boa" sociedade tenta parecer "tudo de bom": modernista, vanguardista, alternativa, nerd, esquerdista, progressista, altruísta, revolucionária, arrojada, a única capaz de "comandar o mundo" e guiar a humanidade planetária rumo ao futuro mais futurista.

No entanto, essa "boa" elite do atraso não consegue esconder seu DNA da aristocracia da Casa Grande do Brasil escravocrata do passado, quando nem o "iluminismo de engenho" dos inconfidentes escapava da obsessão em manter o regime de exploração do trabalho escravo por ser o "único meio de movimentar a economia brasileira".

Que diferença têm os intelectuais pró-brega, autoproclamados "de esquerda", que gourmetizam a idiotização cultural como se não houvesse diferença entre os quilombos e o "povão" caricato que aparece em humorísticos de televisão e cinema, e os antepassados "iluministas à brasileira" que defendiam os Direitos Humanos só na França, pois no Brasil a Casa Grande só queria saber de "direitos humanos para humanos direitos" (leia-se a aristocracia branca e escravista do período colonial)?

E o que dizer das tatuagens que as pessoas tanto clamam serem "símbolo de liberdade"? Em verdade s taguagens não passam de uma adaptação politicamente correta das dolorosas marcações a ferro dos escravos, feitas não só como punição de escravos fugitivos mas também como identificação das fazendas e dos senhores de engenhos que lhes são proprietários.

Imitando os EUA macartistas da virada dos anos 1940-1950, tatuagens também representam essa erosão cultural em que o país vive, em que o vazio dos sentimentos humanos tem a insanidade de substituir a simples emoção afetiva pelas "declarações de afeto" manifestas em tatuagens. Ou seja, se alguém quer declarar algum amor ou solidariedade, faz uma tatuagem com este recado.

Aliás, "faz" em termos. Ninguém faz a sua tatuagem. É outra pessoa que faz. E esse culturalismo é constrangedor, e aí me lembro da desculpa que Cléo Pires, de que se não fossem as tatuagens ela viveria, no futuro, como uma velha atormentada. 

Grande erro: a atriz, agora conhecida somente como Cléo, ficará atormentada no futuro se manter suas tatuagens, quando essa prática deixar de ser moda, depois que o culturalismo hedonista e "identotário" se tornar aquilo que o jargão instagramês define como cringe, "coisa ultrapassada", quando as pessoas deixarão de ver sentido transformando seus corpos em "mural".

Na famosa música de Zé Ramalho, "Admirável Gado Novo", o refrão contundente expressa uma ironia, cantada de forma crítica e lamentosa pelo seu autor: "Eh, oh / Vida de Gado / Povo Marcado, eh / Povo Feliz". Fico pensando nesse hedonismo da mediocridade cultural cuja mania de tatuar o corpo, na obsessão doentia de "ser diferente" - sim, tatuagem é pressão estética - , de se "autoafirmar" pelo corpo por não poder se autoafirmar pela personalidade.

Falam que tatuar o corpo é "liberdade". Mas não há diferença fundamental entre tatuar o corpo hoje em dia e marcar o corpo a ferro nos tempos da escravidão. E o pior é que se marcava a ferro os escravos fugitivos para puni-los na sua busca de liberdade. Lamentável ver pessoas hoje sofrendo minutos de dor e gastando dinheiro à toa só para botar algum desenho e uma suposta mensagem no corpo.

Mas esse é o Brasil que não difere, em essência, do período colonial. Claro que existem diferenças de contexto aqui e ali - por exemplo, a rejeição ao "funk" hoje não pode de maneira alguma ser comparado à rejeição ao samba no século passado - , mas a "boa" sociedade de hoje, a elite do atraso que não quer ser chamada pelo nome, mantém seu vínculo com a Casa Grande.

São pessoas que pouco se importam com a agonia de favelados, desempregados, moradores de rua, mas glorificam "médiuns espíritas" que recebem condecorações pela caridade fajuta e sob a mesma hipocrisia premiadora que no passado condecorou escravocratas que davam donativos para ordens religiosas, visando promover bom-mocismo depois de castigar escravos com chicotes e brasas de ferro quente.

Mas hoje tudo é "coisa boa". O Espiritismo brasileiro das "chicutas" que envenenam almas e dos "chicotes" das provações sem fim. Ou as "marcas do corpo" das tatuagens, ou melhor, "gaduagens". E se até a elite do atraso de poucos anos atrás agora é "boazinha", temos que viver no Brasil de faz-de-conta, com os oprimidos vivendo e morrendo sob o silêncio da agonia sufocada em nome do sossego dos opressores. 

E assim se mascaram os traumas do corpo e da alma, terríveis cicatrizes dos oprimidos, como nos antigos escravos que mais sofreram entre todos os componentes do povo brasileiro. As festas da "boa" elite do atraso, que não quer ser assim chamada, até tentam abafar as dores dos antigos escravos e seus descendentes, mas é impossível. Chega um momento em que a positividade tóxica se revela negativa.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

RELIGIÃO DO AMOR?

Vejam como são as coisas, para uma sociedade que acha que os males da religião se concentram no neopentecostalismo. Um crime ocorrido num “centro espírita” de São Luís, no Maranhão, mostra o quanto o rótulo de “kardecismo” esconde um lodo que faz da dita “religião do amor” um verdadeiro umbral. No “centro espírita” Yasmin, a neta da diretora da casa, juntamente com seu namorado, foram assaltar a instituição. Os tios da jovem reagiram e, no tiroteio, o jovem casal e um dos tios morreram. Houve outros casos ao longo dos últimos anos. Na Taquara, no Rio de Janeiro, um suposto “médium” do Lar Frei Luiz foi misteriosamente assassinado. O “médium” era conhecido por fraudes de materialização, se passando por um suposto médico usando fantasias árabes de Carnaval, mas esse incidente não tem relação com o crime, ocorrido há mais de dez anos. Tivemos também um suposto latrocínio que tirou a vida de um dirigente de um “centro espírita” do Barreto, em Niterói, Estado do Rio de Janeiro. Houve incênd...

LULA GLOBALIZOU A POLARIZAÇÃO

LULA SE CONSIDERA O "DONO" DA DEMOCRACIA. Não é segredo algum, aqui neste blogue, que o terceiro mandato de Lula está mais para propaganda do que para gestão. Um mandato medíocre, que tenta parecer grandioso por fora, através de simulacros que são factoides governamentais, como os tais “recordes históricos” que, de tão fáceis, imediatos e fantásticos demais para um país que estava em ruínas, soam ótimos demais para serem verdades. Lula só empolga a bolha de seus seguidores, o Clube de Assinantes VIP do Lulismo, que quer monopolizar as narrativas nas redes sociais. E fazendo da política externa seu palco e seu palanque, Lula aposta na democracia de um homem só e na soberania de si mesmo, para o delírio da burguesia ilustrada que se tornou a sua base de apoio. Só mesmo sendo um burguês enrustido, mesmo aquele que capricha no seu fingimento de "pobreza", para aplaudir diante de Lula bancando o "dono" da democracia. Lula participou da Assembleia Geral da ONU e...

LUÍS INÁCIO SUPERSTAR

Não podemos estragar a brincadeira. Imagine, nós, submetidos aos fatos concretos e respirando o ar nem sempre agradável da realidade, termos que desmascarar o mundo de faz-de-conta do lulismo. A burguesia ilustrada fingindo ser pobre e Lula pelego fingindo governar pelos miseráveis. Nas redes sociais, o que vale é a fantasia, o mundo paralelo, o reino encantado do agradável, que ganha status de “verdade” se obtém lacração na Internet e reconhecimento pela mídia patronal. Lula tornou-se o queridinho das esquerdas festivas, atualmente denominadas woke , e de uma burguesia flexível em busca de tudo que lhe pareça “legal”, daí o rótulo “tudo de bom”. Mas o petista é visto com desconfiança pelas classes populares que, descontando os “pobres de novela”, não se sentem beneficiadas por um governo que dá pouco aos pobres, sem tirar muito dos ricos. A aparente “alta popularidade” de Lula só empolga a “boa” sociedade que domina as narrativas nas redes sociais. Lula só garante apoio a quem já está...

BURGUESIA ILUSTRADA E SEU VIRALATISMO

ESSA É A "FELICIDADE" DA BURGUESIA ILUSTRADA. A burguesia ilustrada, que agora se faz de “progressista, democrática e de esquerda”, tenta esconder sua herança das velhas oligarquias das quais descendem. Acionam seus “isentões”, os negacionistas factuais, que atuam como valentões que brigam com os fatos. Precisam manter o faz-de-conta e se passar pela “mais moderna sociedade humana do planeta”, tendo agora o presidente Lula como fiador. A burguesia ilustrada vive sentimentos confusos. Está cheia de dinheiro, mas jura que é “pobre”, criando pretextos tão patéticos quanto pagar IPVA, fazer autoatendimento em certos postos de gasolina, se embriagar nas madrugadas e falar sempre de futebol. Isso fora os artifícios como falar português errado, quase sempre falando verbos no singular para os substantivos do plural. Ao mesmo tempo megalomaníaca e auto-depreciativa, a burguesia ilustrada criou o termo “gente como a gente” como uma forma caricata da simplicidade humana. É capaz de cele...

“COMBATE AO PRECONCEITO” TRAVOU A RENOVAÇÃO REAL DA MPB

O falecimento do cantor e compositor carioca Jards Macalé aos 82 anos, duas semanas após a de Lô Borges, mostra o quanto a MPB anda perdendo seus mestres um a um, sem que haja uma renovação artística que reúna talento e visibilidade. Macalé, que por sorte se apresentou em Belém, no Pará, no Festival Se Rasgum, em 2024. Jards foi escalado porque o convidado original, Tom Zé, não teve condições de tocar no evento. A apresentação de Macalé acabou sendo uma despedida, um dos últimos shows  do artista em sua vida. Belém é capital do Estado da Região Norte de domínio coronelista, fechado para a MPB - apesar da fama internacional dos mestres João Do ato e Billy Blanco - e impondo a música brega-popularesca, sobretudo forró-brega, breganejo e tecnobrega, como mercado único. A MPB que arrume um dueto com um ídolo popularesco de plantão para penetrar nesses locais. Jards, ao que tudo indica, não precisou de dueto com um popularesco de plantão, seja um piseiro ou um axezeiro, para tocar num f...

O ERRO QUE DENISE FRAGA COMETEU, NA BOA-FÉ

A atriz Denise Fraga, mesmo de maneira muito bem intencionada, cometeu um erro ao dar uma entrevista ao jornal O Estado de São Paulo para divulgar o filme Livros Restantes, dirigido por Márcia Paraíso, com estreia prevista para 11 de dezembro. Acreditando soar “moderna” e contemporânea, Denise, na melhor das intenções, cometeu um erro na boa-fé, por conta do uso de uma gíria. “As mulheres estão mais protagonistas das suas vidas. Antes esperavam que aos 60 você estivesse aposentando; hoje estamos indo para a balada com os filhos”. Denise acteditou que a gíria “balada” é uma expressão da geração Z, voltada a juventude contemporânea, o que é um sério equívoco sem saber, Denise cometeu um grave erro de citar uma gíria ligada ao uso de drogas alucinógenas por uma elite empresarial nos agitos noturnos dos anos 1990. A gíria “balada” virou o sinônimo do “vocabulário de poder” descrito pelo jornalista britânico Robert Fisk. Também simboliza a “novilíngua” do livro 1984, de George Orwell, no se...

O NEGACIONISMO FACTUAL E A 89 FM

Era só o que faltava. Textos que contestam a validade da 89 FM - que celebra 40 anos de existência no dia 02 de dezembro, aniversário de Britney Spears - como “rádio rock” andam sendo boicotados por internautas que, com seu jeito arrogante e boçal, disparam o bordão “Lá vem aquele chato criticar a 89 novamente”. Os negacionistas factuais estão agindo para manter tudo como o “sistema” quer. Sempre existe uma sabotagem quando a hipótese de um governo progressista chega ao poder. Por sorte, Lula andou cedendo mais do que podia e reduziu seu terceiro mandato ao mínimo denominador comum dos projetos sociais que a burguesia lhe autorizou a fazer. Daí não ser preciso apelar para a farsa do “combate ao preconceito” da bregalização cultural que só fez abrir caminho para Jair Bolsonaro. Por isso, a elite do bom atraso investe na atuação “moderadora” do negacionista factual, o “isentão democrático”, para patrulhar as redes sociais e pedir o voicote a páginas que fogem da assepsia jornalística da ...

A RELIGIÃO QUE COPIA NOMES DE SANTOS PARA ENGANAR FIÉIS

SÃO JOÃO DE DEUS E SÃO FRANCISCO XAVIER - Nomes "plagiados" por dois obscurantistas da fé neomedieval "espirita". Sendo na prática uma mera repaginação do velho Catolicismo medieval português que vigorou no Brasil durante boa parte do período colonial, o Espiritismo brasileiro apenas usa alguns clichês da Doutrina Espírita francesa como forma de dar uma fachada e um aparato pretensamente diferentes. Mas, se observar seu conteúdo, se verá que quase nada do pensamento de Allan Kardec foi aproveitado, sendo os verdadeiros postulados fundamentados na Teologia do Sofrimento da Idade Média. Tendo perdido fiéis a ponto de cair de 2,1% para 1,8% segundo o censo religioso de 2022 em relação ao anterior, de 2012, o "espiritismo à brasileira" tenta agora usar como cartada a dramaturgia, sejam novelas e filmes, numa clara concorrência às novelas e filmes "bíblicos" da Record TV e Igreja Universal. E aí vemos que nomes simples e aparentemente simpáticos, como...

“JORNALISMO DA OTAN” BLINDA CULTURALISMO POPULARESCO DO BRASIL

A bregalização e a precarização de outros valores socioculturais no Brasil estão sendo cobertos por um véu que impede que as investigações e questionamentos se tornem mais conhecidos. A ideologia do “Jornalismo da OTAN” e seu conceito de “culturalismo sem cultura”, no qual o termo “cultura” é um eufemismo para propaganda de manipulação política, faz com que, no Brasil, a mediocridade e a precarização cultural sejam vistas como um processo tão natural quanto o ar que respiramos e que, supostamente, reflete as vivências e sentimentos da população de cada região. A mídia de esquerda mordeu a isca e abriu caminho para o golpismo político de 2016, ao cair na falácia do “combate ao preconceito” da bregalização. A imprensa progressista quase faliu por adotar a mesma agenda cultural da mídia hegemônica, iludida com os sorrisos desavisados da plateia que, feito gado, era teleguiada pelo modismo popularesco da ocasião. A coisa ainda não se resolveu como um todo, apesar da mídia progressista ter ...

O BRASIL DOS SONHOS DA FARIA LIMA

Pouca gente percebe, mas há um poder paralelo do empresariado da Faria Lima, designado a moldar um sistema de valores a ser assimilado “de forma espontânea” por diversos públicos que, desavisados, tom esses valores provados como se fossem seus. Do “funk” (com seu pseudoativismo brega identitário) ao Espiritismo brasileiro (com o obscurantismo assistencialista dos “médiuns”), da 89 FM à supervalorização de Michael Jackson, do fanatismo gurmê do futebol e da cerveja, do apetite “original” pelas redes sociais, pelo uso da gíria “balada” e dos “dialetos” em portinglês (como “ dog ”, “ body ” e “ bike ”), tudo isso vem das mentes engenhosas das elites empresariais do Itaim Bibi, na Zona Sul paulistana, e de seis parceiros eventuais como o empresariado carnavalesco de Salvador e o coronelismo do Triângulo Mineiro, no caso da religião “espírita”. E temos a supervalorização de uma banda como Guns N'Roses, que não merece a reputação de "rock clássico" que recebe do público brasile...