Pular para o conteúdo principal

BREGA-POPULARESCO NÃO É DADAÍSMO


A onda da "cultura de massa" brega-popularesca, tendência que incluiu desde os bregas "de raiz", como Waldick Soriano, até o "funk", passando pelo "sertanejo", axé-music, "pagode romântico", "forró eletrônico" e por aí vai, constituindo num "popular de mercado", foi famosa pela grande blindagem de intelectuais e jornalistas.

Ela foi uma espécie de IPES-IBAD pós-tropicalista, tentando nos fazer crer que se tratava de um "provocativo" movimento dadaísta, de uma "subversão" artística ou de uma "rebelião popular" do "mau gosto". Muito lero-lero jornalístico, monográfico e documentarista foi despejado neste sentido.

Só que tudo não passa de cultura de mercado, musical ou comportamental. Nenhum desses brega-popularescos tinha noção precisa do que era a Semana de Arte Moderna de 1922, ou o que eram movimentos como o cubismo, o dadaísmo, o impressionismo ou coisa e tal.

A intelectualidade "bacana" é que fazia seu julgamento etnocêntrico, atribuindo a esses ícones "populares" o que era próprio tão somente da própria intelectualidade. Os funqueiros não tinham ideia de quem eram Andy Wahrol, Malcolm MacLaren ou Carlos Lamarca, mas se o intelectual "bacana" dizia que o "funk" era a síntese desses três, tínhamos que acreditar nisso.

Era o bom "etnocentrismo" que fazia qualquer MC Créu parecer poeta concretista. A coisa não vinha dos ídolos brega-popularescos, que só se comprometiam a representar fenômenos musicais ou comportamentais meramente comerciais, mas do "bom preconceito" de intelectuais que se achavam "provocativos" e queriam transformar neoliberalismo em socialismo modernista. Em vão.

A foto acima mostra uma "provocativa" produção de grafite na 3ª Bienal Internacional do Grafite, em São Paulo, que expressa um "tropicalismo de resultados", em que uma "popozuda" do "funk" tem a cabeça da Monalisa de Leonardo da Vinci, com aquela pose "sensual" que parece de alguém querendo defecar na rua.

Modernismo? De jeito nenhum! Tudo banalizado e normal, e bastante inócuo. A "ditabranda do mau gosto" dá o seu recado consumista, fingindo que está causando uma revolução. Dizer que isso é subversivo é o mesmo que dizer que a Coca-Cola e o MC Donald's são "socialistas" só porque usam o vermelho em suas estéticas publicitárias.

No momento, leio Tempos Fraturados, do falecido escritor Eric Hobsbawm, e ele falava que as manifestações artísticas pós-moderna, a partir do dadaísmo, eram manifestações de guerra contra as "belas-artes", contra a "alta cultura", não necessariamente formas de ampliação de seus horizontes expressivos.

Isso é muito diferente do que o "bom etnocentrismo" de nossos jornalistas culturais e acadêmicos "bacanas" e "provocativos" pensa dos bregas e derivados. Eles não querem fazer subversão, mas seguir uma "linha de montagem" de valores sócio-culturais considerados decadentes e precários e que equivalem a uma imagem de "povo pobre" que agrada as elites abastadas.

Esses intelectuais, por mais que se achem "mais povo do que o povo", só porque são capazes de beber um engradado de cachaça em algum puteiro da esquina, são o reflexo dessa elite, e nem apreciam o povo pobre como uma identificação distante, mas sincera, pelo "outro".

E aí eu ouvi, no portal UOL, uma gravação de 1940 com o poeta Mário de Andrade, grande pesquisador e intelectual modernista, com Mary Pedrosa, então esposa do crítico e depois curador da Bienal Internacional de Arte Moderna, Mário Pedrosa, e da escritora Rachel de Queiroz.

Alguns números musicais do disco, registrado pelo linguista negro norte-americano Lorenzo Turner, são cantados, ora por Mary (de voz lindíssima), Rachel e Mário de Andrade, com o próprio autor de Macunaíma responsável pelo clímax da gravação, a música "Toca Zumba". Provavelmente, o próprio Mário Pedrosa aparece na gravação, de julho de 1940.

O disco mostra também um bate-papo e surpreende pela linguagem moderna. Não fosse a qualidade do disco, um registro evidentemente de 75 anos atrás, poderia vê-lo como atualíssimo. Só que hoje a pós-modernidade é tomada de tantos retrocessos, que muita coisa de hoje soa antiquada e velha, e muita coisa antiga soa renovada e vibrante.

E aí me envergonha o pessoal usar o "funk" para fazer "provocação". Acham que estão seguindo os passos da turma modernista de 1922. Não estão. Os intelectuais "bacanas" estão muito mais próximos dos "gurus neoliberais" de 1990, e sua "provocação" não incomoda, não subverte, apenas desagrada.

O dadaísmo, pelo menos, lançava um debate sobre formas de expressão cultural. Se ele negava os paradigmas das belas-artes, ao menos tinha um propósito artístico, provocava para discutir e não para usar o mau gosto como bandeira de luta ou uma forma de transformar meros fenômenos de consumo em "arte de vanguarda".

Já o "funk", não. Ele nunca passou de um pop dançante chinfrim, válido dentro do seu meio, mas que se promoveu com seu coitadismo e tornou-se mitificado por uma campanha etnocêntrica de intelectuais, que expuseram seus "bons preconceitos", atribuindo ao "funk" referenciais e virtudes que nunca existiram nem existem no ritmo.

Daí que o "funk", como outros fenômenos do "popular de mercado" que é o brega-popularesco, nem de longe constitui alguma expressão modernista, dadaísta, vanguardista ou coisa parecida. E mostra o quanto os intelectuais "sem preconceitos", mas bastante preconceituosos, são elitistas, mesmo quando tentam levar isso pelo lado aparentemente "positivo".

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

SIMBOLOGIA IRÔNICA

  ACIMA, A REVOLTA DE OITO DE JANEIRO EM 2023, E, ABAIXO, O MOVIMENTO DIRETAS JÁ EM 1984. Nos últimos tempos, o Brasil vive um período surreal. Uma democracia nas mãos de um único homem, o futuro de nosso país nas mãos de um idoso de 80 anos. Uma reconstrução em que se festeja antes de trabalhar. Muita gente dormindo tranquila com isso tudo e os negacionistas factuais pedindo boicote ao pensamento crítico. Duas simbologias irônicas vêm à tona para ilustraresse país surrealista onde a pobreza deixou de ser vista como um problema para ser vista como identidade sociocultural. Uma dessas simbologias está no governo Lula, que representa o ideal do “milagre brasileiro” de 1969-1974, mas em um contexto formalmente democrático, no sentido de ninguém ser punido por discordar do governo, em que pese a pressão dos negacionistas factuais nas redes sociais. Outra é a simbologia do vandalismo do Oito de Janeiro, em 2023, em que a presença de uma multidão nos edifícios da Praça dos Três Poderes, ...

"ANIMAIS CONSUMISTAS"AJUDAM A ENCARECER PRODUTOS

O consumismo voraz dos "bem de vida" mostra o quanto o impulso de comprar, sem ver o preço, ajuda a tornar os produtos ainda mais caros. Mesmo no Brasil de Lula, que promete melhorias no poder aquisitivo da população, a carestia é um perigo constante e ameaçador. A "boa" sociedade dos que se acham "melhores do que todo mundo", que sonha com um protagonismo mundial quase totalitário, entrou no auge no período do declínio da pandemia e do bolsonarismo, agora como uma elite pretensamente esclarecida pronta a realizar seu desejo de "substituir" o povo brasileiro traçado desde o golpe de 1964. Vemos também que a “boa” sociedade brasileira tem um apetite voraz pelo consumo. São animais consumistas porque sua primeira razão é ter dinheiro e consumir, atendendo ao que seus instintos e impulsos, que estão no lugar de emoções e razões, ordenam.  Para eles, ter vale mais do que ser. Eles só “são” quando têm. Preferem acumular dinheiro sem motivo e fazer de ...

A SOCIEDADE HIPERMERCANTIL E HIPERMIDIÁTICA

CONSUMISMO, DIVERSÃO E HEDONISMO OBSESSIVOS SÃO AS NORMAS NO BRASIL ATUAL. As pessoas mais jovens, em especial a geração Z mas incluindo também a gente mais velha nascida a partir de 1978, não percebe que vive numa sociedade hipermercantilizada e hipermidiatizada. Pensa que o atual cenário sociocultural é tão fluente como as leis da natureza e sua rotina supostamente livre esconde uma realidade nada livre que muitos ignoram ou renegam. Difícil explicar para gente desinformada, sobretudo na flor da juventude, que vivemos numa sociedade marcada pelas imposições do mercado e da mídia. Tudo para essa geração parece novo e espontâneo, como se uma gíria fabricada como “balada” e a supervalorização de um ídolo mediano como Michael Jackson fossem fenômenos surgidos como um sopro da Mãe Natureza. Não são. Os comportamentos “espontâneos” e as gírias “naturais” são condicionados por um processo de estímulos psicológicos planejados pela mídia sob encomenda do mercado, visando criar uma legião de c...

COVID-19 TERIA MATADO 3 MIL FEMINICIDAS NO BRASIL

Nos dez anos da Lei do Feminicídio, o machismo sanguinário dos feminicidas continua ocorrendo com base na crença surreal de que o feminicida é o único tipo de pessoa que, no Brasil, está "proibida de morrer". Temos dois feminicidas famosos em idade de óbito, Pimenta Neves e Lindomar Castilho (87 e 84 anos, respectivamente), e muitos vão para a cama tranquilos achando que os dois são "garotões sarados com um futuro todo pela frente". O que as pessoas não entendem é que o feminicida já possui uma personalidade tóxica que o faz perder, pelo menos, 20 anos de vida. Mesmo um feminicida que chega aos 90 anos de idade é porque, na verdade, chegaria aos 110 anos. Estima-se que um feminicida considerado "saudável" e de boa posição social tem uma expectativa de vida correspondente a 80% de um homem inofensivo sob as mesmas condições. O feminicida tende a viver menos porque o ato do feminicídio não é um simples desabafo. No processo que se dá antes, durante e depois ...

ESTÁ BARATO PARA QUEM, CARA PÁLIDA?

A BURGUESIA DE CHINELOS ACHA BARATO ALUGUEL DE CASA POR R$ 2 MIL. Vivemos a supremacia de uma elite enrustida que, no Brasil, monopoliza as formas de ver e interpretar a realidade. A ilusão de que, tendo muito dinheiro e milhares de seguidores nas redes sociais dos quais umas centenas concordam com quase tudo, além de uma habilidade de criar uma narrativa organizada que faz qualquer besteira surreal soar uma pretensa verdade, faz da burguesia brasileira uma classe que impõe suas visões de mundo por se achar a "mais legal do planeta". Com isso, grandes distorções na interpretação da realidade acabam prevalecendo, mais pelo efeito manada do que por qualquer sentido lógico. "Lógica " é apenas uma aparência, ou melhor, um simulacro permitido pela organização das narrativas que, por sorte, fabricam sentido e ganham um aspecto de falsa coerência realista. Por isso, até quando se fala em salários e preços, a burguesia ilustrada brasileira, que se fantasia de "gente si...

ED MOTTA ERROU AO CRITICAR MARIA BETHÂNIA

  Ser um iconoclasta requer escolher os alvos certos das críticas severas. Requer escolher quem deveria ser desmascarado como mito, quem merece ser retirado do seu pedestal em primeiro lugar. Na empolgação, porém, um iconoclasta acaba atacando os alvos errados, mesmo quando estes estão associados a certos equivocos. Acaba criando polêmicas à toa e cometendo injustiças por conta da crítica impulsiva. Na religião, por exemplo, é notório que a chamada opinião (que se torna) pública pegue pesado demais nos pastores e bispos neopentecostais, sem se atentar de figuras mais traiçoeiras que são os chamados “médiuns”, que mexem em coisa mais grave, que é a produção de mensagens fake atribuídas a personalidades mortas, em deplorável demonstração de falsidade ideológica a serviço do obscurantismo religioso de dimensões medievais. Infelizmente tais figuras, mesmo com evidente charlatanismo, são blindadas e poupadas de críticas e repúdios até contra os piores erros. É certo que a MPB autêntica ...

A EXPLOSÃO DO SENSO CRÍTICO QUE ENVERGONHA A "BOA" SOCIEDADE

Depois de termos, em 2023, o "eterno" verão da conformidade com tudo, em que o pensamento crítico era discriminado e a regra era todos ficarem de acordo com um cenário de liberdade consumista e hedonista, cuja única coisa proibida era a contestação, o jogo virou de vez. As críticas duras ao governo Lula e as crises sociais do cenário sociocultural em que temos - como a queda da máscara do "funk" como suposta expressão do povo pobre, quando funqueiros demonstraram que acumularam fortunas através dessa lorota - mostram que o pensamento crítico não é "mera frescura" de intelectuais distópico-existencialistas europeus. Não convencem os boicotes organizados por pretensos formadores de opinião informais, que comandam as narrativas nas redes sociais. Aquele papo furado de pedir para o público não ler "certos blogues que falam mal de tudo" não fez sentido, e hoje vemos que a "interminável" festa de 2023, da "democracia do sim e nunca do nã...

COMO A BURGUESIA DE CHINELOS DISSIMULA SUA CONDIÇÃO SOCIAL?

A BURGUESIA ENRUSTIDA BRASILEIRA SE ACHA "POBRE" PORQUE, ENTRE OUTRAS COISAS, PAGA IPVA E COMPRA MUITO COMBUSTÍVEL PARA SEUS CARRÕES SUV. A velha Casa Grande ainda está aqui. Os golpistas de 1964 ainda estão aqui. Mas agora essa burguesia bronzeada se fantasia de “gente simples” e se espalha entre o povo, enquanto faz seus interesses e valores prevalecerem nas redes sociais. Essa burguesia impõe seus valores ou projetos como se fossem causas universais ou de interesse público. A gíria farialimer “balada”, o culto aos reality shows , o yuppismo pop-rock da 89 FM, Rádio Cidade e congêneres, a exaltação da música brega-popularesca (como a axé-music, o trap e o piseiro), a pseudo-sofisticação dos popularescos mais antigos (tipo Michael Sullivan e Chitãozinho & Xororó) e a sensação que a vida humana é um grande parque de diversões. Tudo isso são valores que a burguesia concede aos brasileiros sob a ilusão de que, através deles, o Brasil celebrará a liberdade humana, a paz soc...

LULA QUER QUE A REALIDADE SEJA SUBJUGADA A ELE

LULA E O MINISTRO DA SECRETARIA DE COMUNICAÇÃO SOCIAL, SIDÔNIO PALMEIRA. A queda de popularidade do presidente Lula cria uma situação inusitada. Uma verdadeira "torre de Babel" se monta dentro do governo, com Lula cobrando ações dos ministros e o governo cobrando dos assessores de comunicação "maior empenho" para divulgar as chamadas "realizações do presidente Lula". Um rol de desentendimentos ocorrem, e acusações como "falta de transparência" e "incapacidade de se chegar à população" vêm à tona, e isso foi o tom da reunião que o ministro da Secretaria de Comunicação Social, Sidônio Palmeira, publicitário responsável pela campanha de Lula em 2022, fez com 500 profissionais de assessorias de diversos órgãos do Governo Federal, na última sexta-feira. Sidônio criticou a falta de dedicação dos ministros para darem entrevistas para falar das "realizações do governo", assim como a dificuldade do governo em apresentar esses dados ao ...

THE ECONOMIST E A MEGALOMANIA DA BURGUESIA DE CHINELOS ATRAVÉS DO "FUNK"

A CANTORA ANITTA APENAS LEVA O "FUNK" PARA UM NICHO ULTRACOMERCIAL DE UM RESTRITO PÚBLICO DE ORIGEM LATINA NOS EUA. Matéria do jornal britânico The Economist alegou que o "funk" vai virar uma "febre global". O periódico descreve que "(os brasileiros modernos) preferem o sertanejo, um gênero country vibrante, e o funk, um estilo que surgiu nas favelas do Rio. O funk em particular pode se tornar global e mudar a marca do Brasil no processo". Analisando o mercado musical brasileiro, o texto faz essa menção em comparação com a excelente trilha sonora do filme Eu Ainda Estou Aqui , marcada por canções emepebistas, a julgar pela primeiro sucesso póstumo de Erasmo Carlos, "É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo", uma antiga canção resgatada de um LP de 1971. "A trilha sonora suave do filme alimenta a imaginação dos estrangeiros sobre o Brasil como um país onde bandas de samba e bossa nova cantam canções jazzísticas em calçadões de areia. Mas ...