Num país em que a irritante canção "Evidências", na versão ainda mais irritante cantada pelos canastrões Chitãozinho & Xororó, é considerada "clássico cult", tudo pode acontecer.
Até mesmo uma dupla do tal "sertanejo universitário", que é igualzinha as outras, chamada Jorge & Mateus, que se tornou o hype do último fim de semana.
Claro que o evento tinha uma causa positiva, que é arrecadar material e verbas para combater o coronavírus, mas se sabe que é sob o preço de uma música de gosto muito duvidoso.
Afinal, o "sertanejo universitário", um nome pomposo para um estilo musicalmente muito fraco, superficial e artisticamente muito ruim, não passa de uma grande linha de montagem.
Um som cujo andamento rítmico é calcado no pop-rock tipo Restart, mas misturado com sanfona - ou um sintetizador imitando sanfona, o que ocorre na maioria das vezes - , e, às vezes, indo para um country ou um bolero estereotipados, com letras sobre noitadas e coisa e tal.
O evento nem é original, pois se inspira na apresentação, no Facebook Live, do cantor country Garth Brooks e sua esposa, Trisha Yearwood, que renderam milhões de visualizações.
O problema nem é a apresentação em si, e nem mesmo os cuidados que a equipe da apresentação de Jorge & Mateus tiveram, porque foi uma equipe muito limitada, de 18 pessoas, e seguindo recomendações do Ministério da Saúde para evitar a Covid-19.
O problema é o pretensiosismo da dupla, que ainda definiu o seu evento como "Na Garagem", como se a dupla fosse o suprassumo da música alternativa, o que sabemos que, evidentemente, não é.
Mas desde que li, no livro Que Tchan é Esse?, a choradeira da acadêmica Mônica Neves Leme, tristinha com a constatação de que o É O Tchan é um grupo ultracomercial, tudo é possível nesse país culturalmente devastado que é o Brasil.
Para quem não sabe, Mônica Neves Leme escreveu esse livro, baseado em monografia sobre É O Tchan, usando a tese, pretensiosa e de valor muito duvidoso, de que o grupo baiano simbolizava a herança dos tempos gloriosos do lundu e do maxixe.
Isso é extremamente ridículo.
Na capa do meu livro, que explica o assunto, vi o Beto Jamaica cantando olhando para os glúteos de Sheila Mello, num número constrangedor, e fico perguntando como Mônica Neves Leme queria que o grupo fosse reconhecido pela "sofisticação musical" (?!).
Mas os nomes da música comercial, não só brasileira como estrangeira, vivem dessa choradeira toda, achando que "merecem" o mesmo reconhecimento dos artistas não-comerciais.
As "patrulhas" que blindam os ídolos popularescos e também do pop estrangeiro acabam bancando os malcriados e aí ficam perguntando, feito uns bolsomínions terraplanistas: "Tira o dinheiro do Chico Buarque e do Bob Dylan para ver se eles continuam fazendo música".
O problema dos artistas não-comerciais não é que eles também ganham dinheiro, mas é porque o lucro não é um fim em si mesmo, eles priorizam o talento, a honestidade artística e a sinceridade social.
Isso é diferente do pop comercial, em que até as "letras confessionais" são uma mercadoria, até as causas identitárias são rebaixadas a meros produtos de consumo.
Não será o "sertanejo universitário" que irá resolver o problema, mesmo sob a ação patrulheira dos fanáticos de uma ridícula dupla chamada João Bosco & Vinícius, que, independente dos nomes serem ou não reais, parodia nomes de MPB, como que para causar confusão.
Aqui o hit-parade tem uma influência tão totalitária que até a chamada "cultura rock" aqui está abaixo do indigente, ignorando até bandas seminais como Buzzcocks e Kinks, e vivendo sob a supremacia de rádios canastronas como a carioca Rádio Cidade e a paulista 89 FM.
Aliás, recentemente soube que a cantora Manu Gavassi, ícone do pop adolescente, é filha do radialista Zé Luís, da 89 FM, o que diz muito sobre o envolvimento dele com rock, comparável ao que, digamos, o Caio Coppola tem com ciência política.
Seja pop, popularesco ou rock, o hit-parade chegou a criar até mesmo os "fãs de uma música só" de bandas de rock manjadas como AC/DC e Deep Purple, para ver a situação calamitosa que temos em relação a gostos musicais.
Fica aquela atitude cretina, do tipo: "pelo menos é melhor que curtir cem canções de funk, sertanejo ou pagode, né?".
Só que o problema é que até o "funk, sertanejo e pagode" também tem seus cães de guarda, apesar da aversão de mentirinha dos "roqueiros" da dupla radioneja 89 / Cidade.
Eu rodei pelas ruas de Niterói, Rio de Janeiro e Baixada Fluminense, e me surpreende que os ouvintes da Rádio Cidade são, na verdade, fãs de "sertanejo", "funk" e "pagode romântico" querendo parecer "jovens californianos" ouvindo o que entendem ser "sons de gringo".
Na boa, eles nem querem saber de ouvir rock. Usam o rock apenas como uma roupagem sonora para eles, envergonhados em viver no Grande Rio decadente, se sentirem como se estivessem passeando por West Hollywood, em Los Angeles.
Daí que a coisa que mais vejo nas pessoas sintonizadas na Rádio Cidade é um ar de transe mental, sem se importar se o som que ouvem é metal, grunge ou rock australiano. Para eles, pode ser qualquer nota, desde que seja identificável como "rock".
E isso tudo não difere muito dos fãs de Jorge & Mateus, que se tornou o hype "sertanejo" dos internautas médios das redes sociais, depois de Chitãozinho & Xororó, Zezé di Camarto & Luciano, Bruno & Marrone e César Menotti & Fabiano.
E já dá para perceber que esse "universo mainstream" pós-1990 tem fãs mais fanáticos e agressivos do que as vertentes fascistas do punk hardcore.
Isso é triste. Triste saber que o comercialismo rasteiro da música popularesca, aliás um ultracomercialismo cada vez mais hegemônico, seja visto como algo cult.
Enquanto emepebistas geniais morrem um a um, o ultracomercialismo popularesco vende a falsa imagem de "vanguarda", como se observa em Jorge & Mateus.
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