
Ser um iconoclasta requer escolher os alvos certos das críticas severas. Requer escolher quem deveria ser desmascarado como mito, quem merece ser retirado do seu pedestal em primeiro lugar.
Na empolgação, porém, um iconoclasta acaba atacando os alvos errados, mesmo quando estes estão associados a certos equivocos. Acaba criando polêmicas à toa e cometendo injustiças por conta da crítica impulsiva.
Na religião, por exemplo, é notório que a chamada opinião (que se torna) pública pegue pesado demais nos pastores e bispos neopentecostais, sem se atentar de figuras mais traiçoeiras que são os chamados “médiuns”, que mexem em coisa mais grave, que é a produção de mensagens fake atribuídas a personalidades mortas, em deplorável demonstração de falsidade ideológica a serviço do obscurantismo religioso de dimensões medievais. Infelizmente tais figuras, mesmo com evidente charlatanismo, são blindadas e poupadas de críticas e repúdios até contra os piores erros.
É certo que a MPB autêntica está problemática. A falta de diálogo com as classes populares, mesmo consequente das sabotagens do mercado, incluíram muito na elitização da música brasileira de qualidade. A bregalização também desviou o foco e o único espaço da MPB, as trilhas de novelas, acabaram. Ou seja, nem os espaços restritivos temos, com a MPB forçada a repercutir em novelas de TV enquanto a música popularesca entra fácil nas redes sociais.
Em que pese a pasteurização musical, a pieguice romântica e outros problemas que atingem a MPB autêntica, ela ainda é referência de música brasileira de qualidade, diferente do comercialismo rasteiro dos popularescos. Mesmo a breguice gurmê de Michael Sullivan, Péricles, Chitãozinho & Xororó e Ivete Sangalo, entre outros, não convence culturalmente apesar do apoio de muitos críticos complacentes, até por serem suas músicas meras linhas de montagem inspiradas justamente nas fórmulas pasteurizadas que atingiram a MPB a partir dos anos 1980.
E o que houve desta vez com Ed Motta criticando Maria Bethânia?
Tudo ocorreu quando houve um problema técnico durante uma apresentação ao vivo de Caetano Veloso e Maria Bethânia no Farmasi Arena, no Rio de Janeiro no último 15 de março, no momento em que ela estava cantando. Indignada, a irmã de Caetano fez um desabafo depois que um microfone foi trocado por outro defeituoso que não permitia a ela cantar, depois de dizer coisas como "Não dá para cantar. Me respeitem":
"Isso quer dizer o quê? Para mim está um horror. Só tem chiado no meu ouvido. Não é absolutamente o som que eu estava cantando. Querem me desafiar. Acabou. Chama Caetano (Veloso} para fazer o final do show. Eu não posso fazer o solo se eu não tenho voz, gente. Sou uma cantora, não tenho outra coisa senão minha voz. Sinto muito, é uma vergonha no Rio de Janeiro acontecer isso".
Dias depois, o cantor e compositor Ed Motta reagiu e fez duras críticas à cantora baiana, acusando-a de “não tocar piano”:
"É sabido a forma como ela trata os músicos, os colaboradores, todos. Nunca tive problema com meus músicos. Tive um problema infeliz com uma pessoa que não era meu funcionário, estava em teste e tinha cometido um erro crasso. Pelo fato de eu reclamar, tenho pago um preço na minha vida que não para. As pessoas me perseguem. Tenho público no mundo inteiro. Poderia me mudar para qualquer lugar, mas não tenho vontade. Quero viver aqui. É nojento e covarde o tratamento que me é dirigido. Principalmente o tratamento que a imprensa brasileira dá para mim. Isso reflete na cabeça das pessoas, sendo a cabeça das pessoas tão fraca, se influenciam por tudo. Estou dentro dessa seara, das pessoas perseguidas pela imprensa cultural do Brasil. Parabéns! Acabei de ver o vídeo. A plateia aplaude. ‘Maravilhosa’, ‘necessária’, esse tipo de coisa. Uma pessoa que não sabe tocar nem piano. Não sabe harmonia, não estudou música, nada. Eu sei tocar piano, eu estudei música. Mas, infelizmente, não tenho o respeito necessário no País do feijão e do futebol".
Mais tarde, foi divulgado um vídeo, nas redes sociais, em que Maria Bethânia aparece tocando piano de maneira talentosa. Vale lembrar que era comum, entre as pessoas nascidas nos anos 1940, que muitos meninos e meninas tivessem aulas de piano, o que influiu no futuro musical de, por exemplo, muitos guitarristas, baixistas e cantores de rock britânico, boa parte deles com habilidade para tocar piano. Na MPB, vários intérpretes haviam, no passado, tido aulas de piano quando eram crianças ou adolescentes.
Sabemos que a MPB mainstream anda tão aristocrática que Caetano e a finada amiga Gal Costa foram acusados de exploração e maus tratos contra empregados domésticos. Sabemos que mesmo a MPB autêntica quase não tem letras falando sob o ponto de vista de excluídos sociais, salvo honrosas exceções.
Mas fazer tempestade no copo d'água de Maria Bethânia tem seu lado perigoso, pois ninguém sai por aí criticando canastrões musicais como Michael Sullivan e Chitãozinho & Xororó. Ídolos como estes, pelo contrário, recebem passagens de pano muito generosas, e o que eles fazem é até pior do que a MPB aburguesada.
Devemos lembrar, também, que o brega gourmetizado de Sullivans, Xororós, Alexandre Pires, Daniel, Bell Marques, Ivete Sangalo e companhia também estão a serviço de um público burguês, cheio da grana, e as músicas desses ídolos popularescos nunca falam do excluído social verdadeiro, daquele que, no cotidiano, tem as portas e janelas fechadas em suas vidas e ainda têm seus tapetes puxados por eventuais almofadinhas como, recentemente, os comediantes que inventam uma "carreira jornalística simultânea" para abocanhar profissões como analistas de redes sociais.
Ed Motta acaba se queimando quando pega pesado demais em certos nomes, mais atraindo repúdio do que apoio, enquanto a música brega-popularesca se aproveita disso para vender a imagem de "cultura legal", como se fosse o máximo idiotizar as massas e enganá-las com sucessos pretensamente populares.
É aquela coisa. Enquanto se chutam cachorros mortos ou agonizantes, os lobos vestem peles de cordeiros e se escondem entre as ovelhas e as raposas são sempre chamadas para reconstruir os galinheiros que elas sempre construíram.
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