Num primeiro momento, quando há um ataque em série nas redes sociais, com internautas sendo usados como "gado" para um valentão humilhar alguém que pensa diferente dele, tudo parece ser uma atitude que oferece ao grupo honra e orgulho.
Presos às suas convicções do presente, o valentão e seu "gado" - formado por aparentes amigos que o acompanham em comunidades específicas diversas - se acham invulneráveis.
Não lhes adianta avisos nem advertências. "Nem Jesus Cristo me controla, mermão. O que ele tem que fazer, para mim, é fazer o que eu rezo e dizer 'Amém' ao que eu faço", pensa o valentão.
Mesmo pessoas não necessariamente ofensoras, mas que pegam carona no linchamento digital, também não se preocupa em fazer parte da "saudável brincadeirinha", um dos passatempos comuns do chamado "tribunal da Internet".
Só que chega um tempo em que tudo muda, como naquele balneário tão conhecido pelo sol escaldante e clima veraneio que passa a viver uma fase de nuvens castanhas e muita trovoada e tempestades.
O valentão do primeiro momento não consegue se entender com seus amigos, passa a cometer gafes profundas, é denunciado por suas atrocidades digitais e passa a se tornar "vidraça", ou seja, alvo de humilhações piores do que ele despejava a outros.
Os motivos eram geralmente as supostas "novidades" que esse "boiadeiro" digital e seu "gado bovino" apoiava, só porque lhes pareciam coisas "modernas" e "arrojadas".
Rádios pseudo-roqueiras com o nome genérico (e constrangedor) de "Cidade", ônibus com pintura padronizada, mulheres-frutas e similares, ídolos "sertanejos" (tidos como "caubóis de carrossel"), o "funk" como um todo e políticos como Jair Bolsonaro.
No Rio de Janeiro, que se tornou antro de retrocessos desde os anos 1990, viu as milícias digitais, atuantes desde antes do Orkut, apostavam em tudo isso como se fosse o "novo do novo".
Não aguentavam discordância e, identificando o discordante, partiam para o linchamento digital, às vezes até beirando à agressão física.
Um busólogo da Baixada Fluminense foi a Niterói perseguir desafetos que não concordavam com os "ônibus padronizados" e, em vez de encontrar suas vítimas para uma possível agressão, ele acabou sendo observado, à distância, por milicianos que atuam em vans parados nas proximidades.
O bolsonarismo ensinou ao grande público a ascensão e queda desses reacionários virtuais.
Defendendo ideias decadentes, apoiando mentiras que lhes agradam, caluniando quem é diferente delas, as milícias digitais chegaram ao ponto de eleger seu representante, o hoje comprovadamente deplorável Jair Bolsonaro, como presidente do Brasil.
As milícias que, a partir do Rio de Janeiro, pediam retrocessos, depreciando quem não concordava com os mesmos, se transformaram, como larvas em insetos, nos bolsomínions que se enroscam com a bandeira brasileira e cantam hinos militares.
Ficou comum ver pessoas tresloucadas, usando a bandeira brasileira e gritando sob o fundo musical de hinos do Exército ou da Marinha, pedindo o "fim do comunismo" e a "intervenção militar" para "varrer para longe a sujeira da corrupção do Brasil".
Mudam o inimigo conforme se troca a roupa: ultimamente se tornaram hostis à Rede Globo, Folha de São Paulo e o deputado federal Rodrigo Maia, que não são lá progressistas, diga-se de passagem.
Nas últimas semanas, com a tragédia da Covid-19 forçando a obrigação emergencial do isolamento, os bolsomínions fizeram um apelo para reabrir o comércio e o Brasil voltar à normalidade na marra.
São pessoas alucinadas, paranoicas, que já estão se rebelando até contra quem já é conservador, como João Dória Jr. ou Rodrigo Maia, ou mesmo o ministro da Saúde do governo Bolsonaro, Luiz Henrique Mandetta, que defende o isolamento dos brasileiros para evitar o contágio do coronavírus.
Um caso recente foi da professora Fátima Montenegro, que, indignada com a ordem do isolamento, pediu para que Jair Bolsonaro impusesse o fim do isolamento e pusesse o Exército nas ruas para forçar a reabertura do comércio.
"É difícil para o senhor porque só tem gente para derrubar. Mas, o senhor tem o povo e eu faço parte dele. Eu tô aqui pedindo: põe o Exército na rua, presidente, abra esse comércio. Sou professora e não estou podendo dar aula", disse ela.
O vídeo foi postado por Jair Bolsonaro nas redes sociais e repercutiu negativamente. E descobriu-se que a professora é, na verdade, uma empresária, dona de uma rede de cursos técnicos de caligrafia para adultos e crianças, a Caligrafia ABZ.
Só que esse apelo revela o quanto os reacionários que eram capazes de defender até a gíria "balada" (© Jovem Pan) são muito ignorantes.
Vendo o mundo em seus umbigos, eles se esquecem que o isolamento é a única medida preventiva para evitar o contágio do coronavírus, e apenas se permite o trabalho em funções essenciais, como para vender produtos alimentícios e de limpeza, e a saída para abastecer a casa com esses ítens.
A situação atual é gravíssima e imprevisível, e eu, do contrário de Bolsonaro, saio para comprar coisas com um certo clima de apreensão.
O vírus não seleciona caráter, ele não fica matando só cartunistas educadores, cantores country, veteranos do jazz ou esportistas obscuros.
Fala-se que a violência contra a mulher se agrava na quarentena. Houve caso de feminicídio na Itália. A diferença é que, na fuga, o feminicida tem, entre tantos riscos ocultos (como o infarto fulminante e os acidentes de carro), a ameaça de morrer contaminado pelo coronavírus.
Aliás, são os imprudentes, dos quais se enquadram os bolsomínions, que estão mais sujeitos a morrerem de Covid-19.
Isso é óbvio: quem se descuida, contrai a doença, porque se expõe ao risco.
E é justamente essa realidade que fez decair o governo Bolsonaro decair, depois dos Quenuncas passarem pano nos erros graves do hoje decorativo presidente.
Bolsonaro está isolado, e está perdendo aliados um a um, enquanto os seguidores mais radicais se veem ameaçados pelo naufrágio político de seu "mito", por quem se mantém solidários (e solitários).
Afinal, dizem informações de bastidores que uma junta militar já está governando no lugar de Bolsonaro.
E aí o sonho dos sociopatas que, antes, defendiam a Rádio Cidade "roqueira", a gíria "balada" (© Jovem Pan), as mulheres siliconadas e os ônibus padronizados e, recentemente, elegeram Bolsonaro, agora se veem num pesadelo de defender um tipo de Brasil que só eles acreditam existir.
E é um Brasil que há muito tempo não existe mais, um Brasil retrógrado que tentou resistir na marra pelas milícias digitais, mas que agora corre o risco de morrer contaminado pelo coronavírus.
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