Oficialmente, qual a diferença entre a música comercial e a música não-comercial no Brasil?
A diferença é que a música comercial é não-comercial e a música não-comercial é comercial. Vá entender.
Hoje vivemos a era do ultracomercialismo na música brasileira, com Jojo Toddynho, Pablo Vittar e Anitta, no qual se consolida o tão almejado, há 50 anos, vínculo com o hit-parade estadunidense, e a hora é da grande mídia e dos intelectuais "bacanas" defenderem o establishment comercial.
A choradeira é a mesma: "sucessos populares" que historicamente receberam ataques de críticos musicais, "movidos pelo preconceito".
Embora parta de jornalistas, intelectuais e acadêmicos tão "bonzinhos" com o "popular demais", na esperança de que o jabaculê de hoje vire o folclore do amanhã, eles acionam a munição quando se fala de críticos da música brasileira de sucesso.
Não sobra alvo: são os "intelectuais muito inteligentes", as "esquerdas progressistas" e os "profundos conhecedores da cultura brasileira".
Dispara-se chumbo grosso contra aqueles que reprovam o "popular demais".
O texto de O Globo do último sábado, intitulado "Críticas a 'Que Tiro Foi Esse?' e outras canções levantam a questão: a música brasileira está pior?", é quase todo apologista ao ultracomercialismo musical, que, claro, alimenta a mídia e a Rede Globo, que fatura com esses sucessos.
A tese que domina a reportagem, dita por acadêmicos, é a favor do "popular demais", que, numa mistura de alhos com bugalhos, é comparada a Pixinguinha, à Bossa Nova ou à Chiquinha Gonzaga.
Apenas Nei Lopes destoa da voz corrente, admitindo que o "popular demais" é fruto de um monopólio dos meios de produção e distribuição de música.
Fora isso, o que se vê é uma descontextualização das críticas, como se o que movesse, no passado, críticas a Pixinguinha, fossem as mesmas questões que movem as críticas a Jojo Toddynho.
Essa descontextualização levou os intelectuais buscassem no distante Gregório de Mattos, lá pelo século XVIII, para explicar a erotização do É O Tchan ou do "funk".
Um absurdo é nivelar as críticas ao "funk" hoje às da Bossa Nova há 55 anos.
A Bossa Nova era uma mistura musical, de samba, jazz e standards (a canção romântica da fase áurea de Hollywood) com uma forte preocupação com a melodia e os arranjos.
O "funk" é mais um karaokê feito por ídolos fetichizados. É só uma batida e um vocal esganiçado.
E quem elogia o "funk" hoje esculhamba mais a Bossa Nova do que José Ramos Tinhorão, em outros tempos.
O problema é que, de 1968 para cá, quando vieram os primeiros críticos à bregalização musical, veio uma linhagem diferente de críticos musicais.
Isso não é levado em conta. Mas vemos uma tradição apologista de intelectuais pós-tropicalistas que levou no radicalismo atual da intelectualidade "bacana".
É uma intelectualidade que, no âmbito do anti-intelectualismo, quer ter uma imagem "simpática" e um tanto populista em relação aos sucessos "populares demais" da música brega-popularesca.
Dos bregas de raiz ao "funk", de Waldick Soriano a Jojo Toddynho, criou-se uma tradição apologética que cria um raciocínio semelhante ao de tentar provar que, por exemplo, um Big Mac do McDonald's é comida para vegetariano.
A partir dos primeiros ídolos cafonas, o comercialismo musical se tornou um fim em si mesmo.
Ele atinge seu nível máximo hoje, quando nomes como Anitta, Luan Santana e Claudia Leitte chegam a interagir com ídolos comerciais estadunidenses ou hispano-americanos em duetos.
O "popular demais", que veio dos primeiros ídolos cafonas em diante, não é expressão do povo pobre. É, sim, uma representação do povo pobre, na condição de consumidor de sucessos radiofônicos.
Se o "popular demais" é expressão de alguém, é da grande mídia que a veicula, seus executivos e produtores.
Esquecemos que as rádios ditas "populares" são oligárquicas e a mídia oligárquica nunca se opôs ao "popular demais".
Mesmo assim, intelectuais gastam maços de papel e espaços digitais para, com um discurso "cabeça", criar mirabolantes teses "etnográficas" dos quais se recorre até a Malcolm McLaren, Tom Wolfe e até Marc Bloch para explicar ou narrar os fenômenos "populares demais".
O problema não é a diversidade cultural com folclóricos, sofisticados, comerciais, cafonas etc.
É que essa desculpa de "ruptura do preconceito" só faz o "popular demais" se ampliar, criando um monopólio musical enorme.
Tentam dizer esses intelectuais que Jojo Toddynho é que é a "discriminada", a "injustiçada" e "carente de seus próprios espaços".
Quem é discriminada, injustiçada e carente de seus próprios espaços é a MPB autêntica, tão sufocada que não pode divulgar novos artistas fora do esquema mafioso das novelas da Rede Globo.
A cantora Tiê tentou alegar que o dueto com Luan Santana não é "por interesses comerciais".
Fala sério. Ela investiu "espontaneamente" nesse dueto porque está sabendo que não pode ficar parada nos mesmos espaços de divulgação.
O dueto tem motivos comerciais, sim. É para Tiê tocar nos festivais de inverno no interior do pais, porque neles o mercado "sertanejo" é que manda.
Quem faz monopólio é o "popular demais", invertendo o discurso intelectualoide que predomina no imaginário da sociedade pós-moderna.
E mostra o quanto intelectuais que se arrogam em dar a palavra final sobre o que é "expressão das classes pobres" possuem uma interpretação etnocêntrica.
Como eles foram os que mais ouviram MPB, eles ficaram cansados dela e acham que só ela é o establishment.
Acham que o "popular demais" é um bando de ídolos independentes com quase nenhum espaço na mídia.
Daí a falsa ideia de "vanguarda" que atribuem ao "popular demais".
Daí o preconceito desse pessoal "sem preconceitos".
O "bom etnocentrismo" de quem acha que o "popular demais" que rola longe deles não é mainstream.
Eles gostam porque está longe deles. É fácil ver "vanguarda" em qualquer coisa que passa a mil metros de distância.
Comentários
Postar um comentário