De que adianta a classe média abastada se autoproclamar de "esquerda democrática" se ela não suporta ler textos carregados de senso crítico? Bem resolvida na vida, essa elite do bom atraso, cujos avós marcharam pedindo a queda de João Goulart, nem precisa de reconstrução do Brasil. Sob Temer e Bolsonaro, essa elite viveu do bom e do melhor, sempre passou as noites dos fins de semana tomando cerveja e jogando conversa fora, eles não estavam aí com a hora do Brasil.
Por isso o medo do senso crítico é o mesmo do que em 1968. Talvez até pior. Naquela época os debates eram mais corajosos, foi preciso o AI-5 para calar as vozes discordantes do status quo que começou a desenhar-se em 1964 e ganhou contornos mais exatos de 1974 para cá.
Hoje o que temos é o "AI-SIMco", uma democracia do "estar sempre de acordo com tudo", dentro da visão preguiçosa de que os erros humanos se limitam, agora, ao bolsonarismo, quando Jair Bolsonaro e companhia são apenas subprodutos de um culturalismo brega-obscurantista que prevaleceu na Era Geisel e que luta por uma suposta ressignificação sob a batuta política de Lula.
E aí Lula vai para as diversas cúpulas internacionais (como a Cúpula dos BRICS, em Joanesburgo, na África do Sul - um dos BRICS - , hoje em andamento), quando poderia enviar seus ministros. Falta um espírito de equipe entre Lula e seus ministros, que permita que estes possam representar o presidente em eventos no exterior.
O contexto das viagens estrangeiras permite que ministros possam negociar investimentos externos, seguindo a orientação do presidente, que por sua vez teria mais necessidade de ficar no país, devido à situação cada vez mais complexa. Como negociador, Lula se torna mais supérfluo para as autoridades estrangeiras e mais necessário para resolver a crise brasileira deixada por Bolsonaro.
Reconstruir uma casa requer remover todo tipo de sujeira. Não se faz isso com festa, balançando os bracinhos e pulando e cantando. Se faz removendo todo tipo de sujeira, ora. E, no caso da reconstrução do Brasil, isso requer muito senso crítico. Até parece que eu fico reclamando o tempo todo, só que não. Eu sou uma das pessoas mais positivas e esperançosas do Brasil, mas quando tudo está errado, não sou de passar pano.
No caso do governo Lula, o ideal seria ele passar o ano inteiro no Brasil e cuidar da reconstrução. Graças à sua ênfase, exagerada e desnecessária, pela política externa, os progressos do nosso país ocorrem, mas num ritmo mais lento. Os preços baixam devagar, se é que baixam, pois em certos casos eles aumentam. Os juros tiveram uma queda minúscula.
O desemprego está lento e os critérios do mercado de trabalho e dos concursos públicos ainda estão presos a critérios meritocráticos e, quando se tornam flexíveis, vão para o outro extremo, como o fato de preferir profissionais divertidos do que talentosos.
A "boa" sociedade não gosta de que se critique a política externa de Lula. Foge de textos que falam que isto está errado. Traumatizada pelo desgoverno de Jair Bolsonaro, a "boa" sociedade, a "classe média de Zurique" que acha que país desenvolvido e parque de diversões são a mesma coisa, não aceita que se diga que Lula comete erros, porque acaba fazendo chilique, birra.
Lula poderia pensar em política externa depois. A reconstrução do Brasil, que até agora não ocorreu para valer, deveria ser a prioridade. Ninguém gostaria de ver aquele que deveria mais prestar socorro viajando para fora o tempo todo, não é?
Mas não se pode criticar Lula quando ele comete gafes com seus comentários sobre o conflito entre Rússia e Ucrânia. Não se pode criticar Lula querendo transformar os BRICS numa casa da sogra. Até mesmo a aberrante notícia, que pude conferir com provas, de que Lula não comemorou a absolvição de Dilma das acusações de corrupção, posso relatar.
Não, infelizmente. Não se pode ser mais jornalista neste Brasil. Tem que se fazer showrnalismo, virar um flanelinha da palavra, sair passando pano em tudo, e até produzir um coquetel com meias-verdades e mentiras inteiras que, misturadas com algumas poucas verdades, produzem um discurso que soa "verdade indiscutível" porque soa agradável e é compartilhado por algumas centenas de pessoas que entram em contato constante consigo mesmas.
Nosso país ainda não conseguiu superar a crise bolsonarista de antes. Até se admite que está institucionalmente mais respirável do que nos tempos de Temer e Bolsonaro. Mas vamos combinar que, para quem esperava o melhor de todos os governos da História da República, o atual mandato de Lula soa muito medíocre e até mais moderado do que o primeiro mandato. Isso é fato e não deveria ser discutido.
Para quem concebe a liberdade humana através de valores construídos pela Folha de São Paulo, é ótimo Lula ficar fora do país enfatizando demais a política externa, algo que poderia ser adiado sem prejuízo. Mas como é um pessoal que vive bem de vida, passeia com seu SUV por qualquer lugar e pode viajar para Orlando como um niteroiense vai de Icaraí até o Plaza Shopping, qualquer coisa que Lula fizer é sempre certo.
E, para o bem do Brasil-Instagram que, de tão idiotizado, está virando um Brasil-Tik-Tok, deve-se evitar o senso crítico o máximo possível. Só cabe a democracia sem debates, um AI-SIMco que repagina o "milagre brasileiro" para o sabor da classe média hedonista e identitária.
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