A elite do bom atraso diz a que veio quando julga que basta remover os entulhos do bolsonarismo e do lavajatismo que o Brasil está pronto para ser potência de Primeiro Mundo, bastando apenas ficarmos calados e deixarmos a "alegria do povo brasileiro" dar uma "lição de fraternidade e paz" no velho mundo desenvolvido.
Na verdade, essas narrativas, que chegam a gourmetizar os entulhos socioculturais do "milagre brasileiro" como se fossem "relíquias vintage", se devem por dois motivos: um é a maioria dos usuários das redes sociais pertence à elite do bom atraso, a elite do atraso convertida agora numa sociedade "tudo de bom" que se acha predestinada a ser o "modelo ideal de humanidade planetária". Outro é o solipsismo das pessoas com 50 ou 60 anos que medem a nostalgia por meio de suas impressões pessoais.
Paciência. A música brega não fica mais genial porque os sucessos tocavam no rádio quando o hoje crítico de plantão era adolescente nos anos 1970 e seus saudosos pais levavam ele e seus irmãos para um passeio de Ford Belina ou coisa parecida.
Caímos sempre no conto das memórias afetivas e esse viralatismo enrustido que existe no Brasil - um viralatismo não-assumido, pois oficialmente viralatismo é somente Jair Bolsonaro, Sérgio Moro, Carla Zambelli, Monark e companhia - chega a exagerar ate mesmo na valorização do pop estadunidense (aqui incluindo intérpretes europeus, canadenses e australianos que fazem sucesso nos EUA), que mesmo com inegáveis virtudes raramente pode ser considerado excepcional.
Mas se até mesmo o que havia de culturalmente degradante nos tempos dos generais Médici e Geisel é hoje considerado "relíquia vintage", então há algo errado. Significa que quem aprecia isso não tinha ideia real do que era de fato a ditadura militar ou fazia parte das elites que foram beneficiadas por aqueles tempos de "milagre brasileiro".
Temos que admitir que a Internet é consumida por 85% de pessoas conservadoras moderadas, que até admitem alguma mudança no Brasil, mas com limites. E a orientação de todo o senso comum parte, infelizmente, de um número bem menor, dos 30% de brasileiros bem de vida que ditam os parâmetros do que devemos curtir, acreditar, apoiar, questionar etc. Como se o modo de pensar, agir e gostar de todo o Brasil estivesse privatizado pelas mentes restritivas desses 30%.
Mas engana-se que o Brasil está pronto para ser potência ao remover apenas o entulho bolsonarista. Até porque o bolsonarismo existe porque entulhos mais antigos foram acumulados desde quando o governo João Goulart sofreu uma grave crise, no segundo semestre de 1963. Portanto, há exatos 60 anos.
Acumulamos sujeira por seis décadas e somos proibidos de alertar sobre isso. Textos a respeito repercutem muito pouco, dificilmente atingem um nível significativo de leituras e não servem para formar opinião. Pelo contrário, muita gente se sente incomodada e é tanta sujeira que o "novo normal", de 1974 para hoje em dia, é conviver com essa sujeira como se fosse o mais florido dos jardins.
O fedor mais repugnante dos piores esgotos, se não contar com a acidez raivosa bolsonarista, deve ser encarado como o mais belo perfume das mais belas flores. Esse é o tom do Brasil que temos que conceber, por conta dos 30% de "bacanas" que se acham a "porção mais legal" de toda a espécie humana, por ter salário de cinco dígitos, contas bancárias exorbitantes, compram carro do ano com a facilidade de quem compra uma miniatura de Hot Wheels e adquirem diplomas universitários sem esforço.
Por isso é que as pessoas tentam nos fazer crer que basta combater o bolsonarismo para deixar o Brasil limpinho. Mas há muita sujeira, muita podridão a ser denunciada. E não são somente os trabalhos escravos a serviço de empresas muito conhecidas do público jovem, não são apenas os ambientes tóxicos nos bastidores da televisão e nem casos como as denúncias de importunação sexual do ex-craque Paulo Roberto Falcão.
Há muita coisa podre. Quem é que paga para incluir É O Tchan na onda saudosista na televisão brasileira? Que interesses financeiros não estão por trás de Michael Sullivan ao usar a mesma MPB que quis destruir como trampolim para se relançar na carreira?
Fora da música, a obsessão doentia de muitos brasileiros em cultuar um "médium espírita" muito conhecido e que atuou em Uberaba, um hábito formado durante a ditadura militar - que financiou seitas neopentecostais e o Espiritismo brasileiro com o objetivo de enfraquecer a luta do Catolicismo contra os abusos da repressão ditatorial - , a ponto de publicar nas redes sociais as frases piegas desse suposto "carteiro de Deus", desconhece o lado oculto da trajetória do "bom homem".
Esse lado oculto do "adorado médium" faz o filme O Exorcista parecer comédia pastelão. O "bom médium" apoiou fraudes de materialização, acobertou os crimes do discípulo João de Deus, quase foi para a cadeia por usurpar o legado de Humberto de Campos - por sorte, um juiz suplente com o talento de um Sergio Moro salvou o "médium' da condenação - , apoiou a ditadura mais do que qualquer reacionário histéricoo e ainda teve um sobrinho morto em circunstâncias bastante suspeitas.
Apesar disso, as frases do "bom homem" continuam sendo publicadas, o que mostra o quanto a "boa" sociedade brasileira é retrógrada e ainda se luta para se manterem os entulhos socioculturais mais antigos. A "carteirada" da suposta caridade, nos mesmos moldes que hoje se vê tanto em Luciano Huck como em qualquer campanha eleitoral de cidades "sem lei" do interior do Brasil, blinda o "médium", o que diz muito quanto ao desprezo que a elite do bom atraso dá ao povo pobre.
Afinal, o povo pobre não cultua "médiuns", não se sente representada pelos ídolos popularescos que aparecm no rádio e na TV, veem os jogadores de futebol de maior sucesso como ídolos distantes, como se fossem "apolos no Olimpo", e também quase não usam o celular, pois, quando têm, mal conseguem ir além de seus canais pessoais do Kwai, o "primo pobre" do Tik Tok
É por isso mesmo que textos com forte senso crítico são discriminados e repercutem pouco. A "boa" sociedade não gosta de gente que "reclama demais" e, na verdade, isso não se deve porque o pessoal que reclama "se queixa à toa". É porque nossa burguesia enrustida, que se camufla, invisível, no povo brasileiro como se fosse "uma multidão naturalmente comum", não quer arcar com os ônus de tantos e tantos anos de retrocessos.
Essa "boa" sociedade, hoje a "nata" dos apoiadores de Lula, até tentou, através daquela campanha de "combate ao preconceito" que gourmetizou a degradação da cultura popular brasileira, transformar a pobreza, tradicionalmente um gravíssimo problema social, em "identidade" e até "modelo de vida", apenas fazendo uma cosmética nas favelas investindo em lazer, saneamento básico, tecnologia, eletricidade e alguns paliativos para torar a pobreza "mais confortável", sem realizar uma ruptura estrutural.
Em outras palavras, o pobre continuava sendo, simbolicamente, pobre. Apenas a pobreza era "resignificada" pelo discurso intelectual - desmascarado no meu icônico livro Esses Intelectuais Pertinentes... (Amazon e Clube de Autores) - , deixando de ser um sério problema para ser o artigo principal do discurso das chamadas esquerdas identitárias (um subproduto importado do identitarismo culturalista do centro-direitista Partido Democrata nos EUA).
E isso permite que a "boa" sociedade, sob o pretexto da "consciência social", cultua tanto "médiuns" e funqueiros que zelam pela domesticação do povo pobre, sem combater a pobreza de verdade, mantendo os pobres em suas condições simbólicas degradantes, mas apenas deixando uma cosmética social de falsa emancipação, reduzindo-os aos "pobres" obedientes e infantilizados para o espetáculo da "etnografia para turista ver", com favelas virando safáris humanos, paisagens de consumo.
Vivemos a supremacia dessa elite "invisível", desses herdeiros do golpe de 1964 e do "milagre brasileiro" que agora se acham "tudo de bom", bancando os "donos de tudo", se achando os "melhores do mundo", e discriminando o senso crítico sob a desculpa de "não suportar gente reclamando demais".
Na verdade, a discriminação do senso crítico tem como real motivo não obrigar nossas elites a pagar pelos prejuízos que causaram ao povo brasileiro em mais de cinco séculos e, num contexto mais contemporâneo, nas últimas seis décadas. Dai o pretexto do não-raivismo, a farsa que consiste em nos fazer acreditar na ilusão de que basta eliminar o entulho bolsonarista que o Brasil fica perfeito.
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