Eu esperei passar o impacto da tragédia de Gugu Liberato para escrever este texto.
Fiz isso em respeito à pessoa íntima que o apresentador era para seus entes queridos, seus familiares e seus colegas de trabalho.
Entendo que, entre eles, a dor é intensa e irreparável. E essas pessoas merecem respeito diante da tristeza de tamanha perda.
Gugu Liberato, que havia completado 60 anos em abril passado, estava tentando trocar um filtro de ar condicionado em sua casa de férias em Orlando, Miami, EUA.
Ele não precisava disso. Era suficientemente rico para pagar um técnico para a tarefa. Ao tentar fazer por si mesmo, sofreu um acidente, caindo de uma altura de quatro metros.
Gugu sofreu traumatismo craniano e, com estado muito grave, faleceu na última sexta-feira, à noite.
Ele tinha seus méritos como comunicador, com boa voz, uma fala equilibrada e uma capacidade ao mesmo tempo discreta e segura para interagir com o público.
No entanto, temos que evitar a santificação que ocorre nos óbitos de famosos.
Uma coisa é respeitar a dor dos que conviveram com Gugu Liberato e é muito justo que se mantenha esse respeito e torcer para que eles sejam amparados e iluminados nesse novo caminho difícil.
Outra coisa é dar a Gugu Liberato qualidades nunca existentes e omitir os aspectos negativos de sua carreira.
Afinal, Gugu Liberato ajudou, de maneira decisiva, a formatar a cultura popularesca dos anos 1990, que se tornou tão hegemônica que ela cresceu de maneira vertiginosa e hoje ela se torna totalitária, não apenas mainstream, mas totalmente establishment.
Claro que houve, nos anos 2000, o agravante da campanha pelo "fim do preconceito", que empurrou a bregalização para a aceitação das classes mais abastadas ou mais instruídas, mas a atuação da mídia, e, em parte, de Gugu, foi crucial.
Ele lançou grupelhos de pop adolescente, os grupos de garotos erroneamente conhecidos como "bandas", por serem quase todos apenas grupos de cantores e dançarinos.
Apenas o Polegar, de Rafael Ilha, era uma banda porque seus membros eram instrumentistas. No entanto, faziam o mesmo pop chiclete de Dominó, Ciclone e companhia.
Gugu Liberato também foi o divulgador do "pagode romântico" e do "sertanejo" do começo dos anos 1990, de nomes como Chitãozinho & Xororó, Leandro & Leonardo, Zezé di Camargo & Luciano, Os Morenos, Só Pra Contrariar, Grupo Molejo, Raça Negra etc.
Os mesmos grupos da geração neo-brega de 1990 que hoje, erroneamente, são tidos como "MPB" por mentes bitoladas ou por pessoas dotadas de alguma condescendência paternalista com os medíocres da música brega em busca de algum lugar ao Sol emepebista.
Gugu Liberato também foi um dos maiores incentivadores das baixarias sexistas e pornográficas do É O Tchan, juntamente com a atração do Domingo Legal, a Banheira do Gugu.
A Banheira do Gugu foi até pior do que a Tiazinha e a Feiticeira, musas de Luciano Huck no seu então programa "H".
Mas, como naquelas situações em que o pior é inocentado em nome de um "bode expiatório" menos influente, as "musas da banheira" foram menos criticadas do que as personagens desempenhadas por Susana Alves e Joana Prado.
Isso porque Susana e Joana não eram grosseiras e suas apelações eram light, se comparadas com a atração de Gugu. E as duas largaram o mercado da vulgaridade.
Já entre as "musas da banheira", aceitas como atração trash, Solange Gomes tornou-se, depois, um dos maiores símbolos da obsessiva hipersexualização da mulher, quando o fenômeno da mulher-objeto era reciclado pela mídia do entretenimento como um falso feminismo sensual.
Gugu Liberato, em 2003, também apresentou uma reportagem forjada com dois homens que se passaram por integrantes do grupo criminoso Primeiro Comando da Capital (PCC).
O Ministério Público averiguou as denúncias de fraude jornalística e ela acabou sendo confirmada, condenando o Domingo Legal a ter suas transmissões suspensas.
Mais tarde, na Rede Record, Gugu Liberato apresentou entrevistas com Guilherme de Pádua e Suzane Von Richtofen, o que influi na glamourização das imagens desses dois criminosos.
Já existe uma tendência de achar que tudo que veio do popularesco e da politicagem dos anos 1990 é "genial", quando se tentou reabilitar Fernando Collor como um suposto "grande estadista progressista".
Alexandre Pires, Chitãozinho & Xororó, É O Tchan, Solange Gomes e até Guilherme de Pádua passaram a ser considerados "geniais" num contexto de saudosismo artificial dos anos 1990, mais barra-pesada do que o saudosismo light forjado pelo enredo de Verão 90.
Nesse universo, Gugu Liberato é considerado um mestre da televisão, como citou manchete do jornal carioca Extra, por ironia das Organizações Globo, concorrente do SBT e da Record.
Menos, menos. Gugu Liberato foi apenas um talentoso profissional dentro de um contexto de mídia comercial, gananciosa, vulgar etc, e esteve a serviço dessas finalidades vorazes.
Que lamentemos a perda de Gugu como indivíduo, respeitando e nos solidarizando à dor dos que ficam, isso é um dever de todo ser humano, como eu e você, caro leitor.
No entanto, no que se diz ao Gugu Liberato como astro de televisão, o respeito ao impacto de sua tragédia não pode sucumbir na santificação de sua pessoa e na omissão ou relativização de seus erros.
Será ridículo Gugu Liberato ser trabalhado na posteridade como um propagador do feminismo com sua "banheira" e como um colaborador da "renovação da MPB" lançando ou divulgando grupos de garotos, conjuntos de sambrega e duplas breganejas.
Já se santificou demais um suposto médium "espírita", que usava peruca, e que se projetou como um farsante criador de literatura fake e reacionário de crenças religiosas medievais, e que só virou "símbolo de paz e fraternidade" através de uma estratégia de marketing muito bem engenhosa.
Não vamos levar adiante mais um perigo de distorcer os fatos em prol das conveniências, das fantasias e dos interesses espúrios.
Comentários
Postar um comentário