Não ia escrever mais um texto consecutivo sobre "funk", ocupado com tantas coisas - estou começando a vida em São Paulo - , mas uma matéria me obrigou a comentar mais o assunto.
Uma reportagem do Splash, portal de entretenimento do UOL, narrou a iniciativa de Thiago de Souza, o Thiagson, músico formado pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) que resolveu estudar o "funk".
Thiagson é autor de uma tese de doutorado sobre o gênero para a Universidade de São Paulo (USP) e já começa com um erro: o de dizer que o "funk" é o ritmo menos aceito pelos meios acadêmicos.
Relaxe, rapaz: a USP, nos anos 1990, mostrou que se formou uma intelectualidade bem "bacaninha", que é a que mais defende o "funk", vide a campanha "contra o preconceito" que eu escrevi no meu livro Esses Intelectuais Pertinentes....
O meu livro, paciência, foi desenvolvido combinando pesquisa e senso crítico que se tornam raros nas teses de pós-graduação que, em sua maioria, só ficam passando pano em problema.
E aí vemos uma tese dessas que, da parte de Thiagson, mais parece uma teoria para se jogar na plateia. Pelo menos a tese de Hermano Vianna sobre o gênero, com todos os erros de ideias e abordagens, ainda se respalda por algum critério técnico.
Não li a tese de Thiagson e nem preciso lê-la para dizer que ela é cheia de equívocos, até pela lógica de que ele adianta a essência da sua monografia, na entrevista para o Splash.
Ele já começa dizendo uma coisa gravíssima, um juízo de valor dos mais aberrantes, dos mais sérios, e que consiste num dos seus piores erros e, o que é irônico, um preconceito vergonhoso contra quem rejeita o "funk".
Ele diz o seguinte, com essas palavras:
"Esse pensamento de que funk é lixo é sobretudo racista e classista, porque é uma produção de pessoas pretas, de favela".
Gravíssimo juízo de valor. Afinal, devemos considerar, em primeiro lugar, que aqueles que rejeitam o "funk" e o consideram uma porcaria - é só ouvir as músicas e chega-se a essa conclusão - não são racistas nem classistas.
Só para citar meu caso, eu rejeito o "funk" e tenho parentes negros por parte de meu pai, baiano e mestiço, todos gente muito boa, inclusive primos que moram em Mesquita, na Baixada Fluminense, que são grandes amigos meus.
Lembremos que existe esse "funk-lixo" que é o tal "batidão" e existe o funk autêntico, de nomes realmente de qualidade, como James Brown, Earth Wind & Fire, Chic etc, em grande parte de músicos negros, gente de muito valor.
Por outro lado, não há como levar a sério um gênero cuja "diva" tem nome de personagem digno de A Praça É Nossa, a Valesca Popozuda, e que disse que decidiu ser cantora se inspirando em Xuxa Meneghel.
Acabei de escrever para um livro meu um texto sobre a falecida cantora folk Laura Nyro, que, embora branca, foi uma das maiores apoiadoras da soul music dos EUA. Um disco dela de 50 anos atrás contou com a participação da famosa Patti LaBelle e seu então grupo vocal, o LaBelle.
Justamente na madrugada do dia de meu aniversário, ocorreu uma festa perto de casa e rolaram muitas coisas de "funk" que, sinceramente, são verdadeiramente vergonhosas e pavorosas.
Quanto ao classismo, é de dar gargalhadas, porque a burguesia é a que está mais apoiando o "funk" que Thiagson tanto defende.
É só pensar na minha terra natal, Florianópolis. Sou de uma família do lado do continente, o bairro de Estreito, quase uma periferia. Enquanto isso, quem mais adora "funk" na capital catarinense é o pessoal riquinho que adora se divertir em Jurerê Internacional.
Thiagson não pode pensar na ideia de que a negritude brasileira é dependente do "funk", ou seja, que se torne refém de toda essa indústria de DJs milionários que montam um karaokê muito chinfrim e contratam os "artistas" que apenas botam letras lá.
Quer dizer que o povo pobre não pode ouvir outro tipo de música, virou prisioneiro do "funk" e de toda sua agenda temática retrógrada, que mais se preocupa em espetacularizar a pobreza e os baixos valores da humanidade?
E como é que um estudante de música, com aspirações a doutor, desconhece que o "funk" é a precarização musical por excelência, que discriminou a figura do músico por muito tempo?
Só nos últimos anos, até pelas pressões da opinião pública, é que os funqueiros tocam pandeiro e teclado, mas mesmo assim o resultado é abaixo dos medíocres.
Thiagson diz que o meio acadêmico musical é "conservador". Grande erro, devido à falta de contexto.
Na música erudita - que eu não curto, mas respeito - houve ousadias diversas. Não sou um perito em música clássica, mas o que eu posso dizer é que, no século XX, por exemplo, houve a música concreta.
Em que pese ela lidar com sons caóticos e em quebrar narrativas melódicas, havia o respeito à linguagem musical, o que não ocorre com o "funk".
De forma involuntária, ouvi muito "funk" porque a vizinhança e o comércio das ruas tocava. E pude perceber que, objetivamente falando, música é o que os funqueiros não valorizam.
Tanto isso é verdade que o que os funqueiros mais fazem é essa campanha de coitadismo e triunfalismo que usam para levar vantagem, e da qual o referido doutorando corrobora com gosto.
Conservador é o "funk", que é machista, que não quer a superação da pobreza e prefere falar em ufanismo das favelas.
Sou jornalista formado, pesquisei jornais antigos, e é uma vergonha saber que, enquanto o "funk" defende a favela, a pretexto de defender os favelados, jornalistas sérios descreviam o problema que é morar nessas residências precárias e nesses cenários de pobreza, fome e violência.
Será que Thiagson acha que o livro que Carolina Maria de Jesus lançou em 1960, Quarto de Despejo, falava de como é o maior barato viver em favelas?
O que ele não sabe é que o "funk" gerou um subproduto chamado "safáris humanos", com favelas transformadas em paisagens de consumo turístico e os negros, rebaixados a animais exóticos. Onde está o racismo?
E o conservadorismo musical do "funk" é tão claro que o MC e o DJ tinham uma relação hierárquica: o DJ era o "cérebro" e o MC, apenas o porta-voz do "baile funk".
Vai um MC com violão ou gaita fazer um "funk" e o DJ não gosta, vai dizer que o cara "está estragando com o trabalho dele".
Hoje ninguém assume essa restrição. Já tem funqueiro dizendo até que quer tocar com Hermeto Paschoal, voando alto demais na sua pretensão. Mas em 1990 era assim.
A verdade é que o conservadorismo do "funk" ocorreu de tal forma que era uma única batida para tudo quanto era intérprete.
Para se diferenciarem, os funqueiros tinham que diferir no visual, mudar a posição do boné, etc. Se bem que os MCs do "funk de raiz" eram todos, todos iguais.
Hoje o "funk" tenta correr atrás do prejuízo, samplear mariachi, música indiana e até o Bach, funqueiro tocar pandeiro, funqueira dizer que está lendo Madame Bovary etc.
Mas é tudo tendencioso, sem espontaneidade, apenas porque o "funk" virou artigo para turista inglês ver, mas mesmo assim tudo continua soando uniforme e padronizado.
Afinal, continua sendo uma batida eletrônica para todo mundo, e que só muda de uns quinze em quinze anos. Na boa, não dá para surgir um Buddy Rich ou um Gene Krupa do "funk", não é mesmo?
E de onde Thiagson tirou a ideia de que o "funk" é "sofisticado"? Por causa do tal do "bumbum tantã" do MC Fioti?
E aí ele cita o tal do "Amiga que é Amiga" que diz que tem um som de "percussão iorubá". Só sampleagem. Tudo para forçar a associação com a cultura africana, como numa espécie de carteirada racial das mais oportunistas.
Mas samplear é fácil. O "funk" nunca foi organicamente percussivo, a adoção de batidas de umbanda foi só feita porque certos empresários-DJs de "funk" foram para o pai-de-santo pedir ajuda para fazer sucesso e virar "unanimidade" assim na moleza, e daí que estão só pagando promessa.
Outro problema é que Thagson julga que a música clássica é "pobre" em ritmo.
Óbvio! Não era missão da música clássica expressar o ritmo, sua expressão musical era outra.
E mais: o "funk" nem é tão brilhante assim em ritmo, porque como suposto herdeiro dos tambores africanos, o "pancadão" é um grande fiasco. A disco music e o funk autêntico, este sim com MÚSICOS, dão de um zilhão a zero nos funqueiros que fazem karaokê e ficam se achando.
Já dá para perceber que a tese de doutorado de Thiagson não repercutiu muito, mesmo num espaço administrado pela Folha de São Paulo, um dos veículos que gourmetizaram o "funk" ao lado da Rede Globo.
Graças aos Frias e aos Marinho, o karaokê fajuto do "funk" foi levado a "arte superior".
E dá pena Thiagson falar mal da superioridade artística da música clássica, mas ele mesmo impõe a "superioridade artística" do "funk", com alegações que soam mais especulações e julgamentos de valor.
A música clássica tem pelo menos motivos e esforços para se evoluir e garantir sua superioridade artística. Assim como o jazz, que em maioria era música de preto.
O "funk", não, pois permanece na zona de conforto de sua mediocridade artístico-cultural, com suas péssimas músicas, e só muda quando as conveniências exigem.
Além do mais, os funqueiros são ressentidos, porque eles ficam falando mal dos especialistas em música, ficam demonizando os críticos que não falam bem do "funk", os veem como "monstros horrendos".
Ter senso crítico e saber das coisas virou pecado. Legal é ser medíocre e fazer algo sem saber, sem ter noção de coisa alguma. Primeiro o "artista" vira uma mercadoria, depois ele só molda conforme as conveniências e tendenciosismos de cada momento, não é?
Recado aos funqueiros: deixem de tanto vitimismo e fiquem na sua. Já possuem espaços demais de expressão e lazer para ficar choramingando em busca dos espaços dos outros. Admitam que o "funk" é só um pop comercial chinfrim que nunca vai ser vanguarda, até porque é retaguarda.
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