Pular para o conteúdo principal

BRASIL NÃO CONHECE O VERDADEIRO SENTIDO DOS ANOS 80

A BANDA BRITÂNICA WEATHER PROPHETS FOI UMA DE MINHAS REFERÊNCIAS DA MINHA ADOLESCÊNCIA, NOS ANOS 80.

As pessoas, no Brasil, não conseguem entender o que foram realmente os anos 80.

Limitam tudo à televisão e a outras referências bastante superficiais ou genéricas.

A década de 1980 é encarada no Brasil sob o ponto de vista de uma criança de 12 anos que ouvia rádios pop como Transamérica e via Xou da Xuxa e o programa do Bozo.

As pessoas nascidas a partir de 1978 e que criaram aberrações como os roqueiros que só ouvem uma música de cada banda ou, quando muito, apenas os "grandes sucessos", viveram essa época, no sentido que prevalece nas narrativas de hoje.

Se esquecem que, se o mainstream dos anos 1980 eram lamentáveis, quando o pop reinante passou a estabelecer a ditadura da coreografia na música, o underground era bem mais criativo e vibrante.

A cena alternativa dos anos 1980 era mais instigante e empolgante do que a cena dos anos 90, quando, salvo exceções, prevaleceu o barulho, a melancolia estrema ou a festividade tola.

E não se fala apenas em Smiths, Cure, Cult, ou o estadunidense R. E. M., que no Brasil é mais conhecido na sua fase dos anos 90.

Fala-se em XTC, a banda de Andy Partridge e Colin Moulding, que deveria ter, pelo menos, um quarto da popularidade e projeção de um U2.

Fala-se na trilogia Three of a Perfect Pair, do King Crimson, com os álbuns Discipline (1981), Beat (1982) e Three of a Perfect Pair (1984).

Uma trilogia baseada na geração beat de Jack Kerouac, Neal Cassady, William Burroughs, Allen Ginsberg e outros.

Fala-se de The The, o projeto do multi-instrumentista Matt Johnson, com muitas canções além do sucesso "This is the Day".

Ou de Joe Jackson que, antes de "Steppin' Out", fazia rock pós-punk para as pistas de esqueite, e, depois do referido sucesso, foi fazer sonoridades jazzísticas.

Ou de Billy Bragg, cantor folk britânico de canções bastante sensíveis.

Ou da sonoridade sombria do Bauhaus, com muito a oferecer que não seja apenas "Bela Lugosi's Dead".

Ou o Psychedelic Furs, com seu pós-punk mais acessível, do qual se destaca a regravação de "Pretty in Pink" para o filme homônimo de 1986, já que a canção tem uma versão original (e mais crua) de 1980.

Ou o lado instrumental do Wang Chung, conhecido mais pelos sucessos "Dance Hall Days" e "Everybody Have Fun Tonight", na trilha sonora de Viver e Morrer em Los Angeles (To Live in Die in L. A.).

E bandas que até agora são desconhecidas, como Weather Prophets, Rose of Avalanche, Wedding Present e tantas outras.

Ou os escoceses Soup Dragons, com sonoridade mais rock e bem antes de se fantasiarem de "banda de Madchester" nos anos 90, com a cover de "I'm Free" dos Rolling Stones.

Aliás, até os Rolling Stones, embora em fase de divergências e com uma estética visual mais pop, podem ser lembrados em discos injustiçados como Undercover of the Night (1983) e Dirty Work (1986).

E, no Brasil?

O rock da Baratos Afins, sobretudo Fellini e Voluntários da Pátria, se destacavam.

O rock alternativo e independente fervilhava, mas o problema é que, no final dos anos 80, algumas bandas queriam fazer rock sombrio no Cassino do Chacrinha e nas trilhas das novelas das 19 horas da Globo e a coisa melou.

Da mesma forma que o "darquismo" - o "tem que dark certo" (paródia do lema "Tem que dar certo" do governo Sarney), dos darks que eram paródias dos góticos britânicos - , que parecia fingir depressão sob as luzes neon de São Paulo ou sob o luar das praias cariocas.

Havia o Camisa de Vênus com uma bagagem de informações roqueiras que fizeram apresentar sutilmente Undertones e Buzzcocks aos baianos, antes do resto do país, através de "Meu Primo Zé" e "O Adventista".

E havia o Saara Saara fazendo música eletrônica inusitada, misturando humor e criatividade emulando sonoridade árabe e efeitos especiais.

E havia os Picassos Falsos antecipando a mistura de rock e música brasileira.

E havia também o sabor de conhecer a Legião Urbana das fitas-demo, bem antes da massificação.

Na literatura, obras como Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva e o estrangeiro Christiane F..

No teatro, as influências contraculturais da geração Asdrúbal Trouxe o Trombone que chegava às telas da Rede Globo.

No cinema, um período difícil no Brasil mas uma tentativa de retomar o idealismo do Cinema Novo, ainda que ofuscado pelos filmes comerciais dos Trapalhões.

A bibliografia historiográfica buscava repensar os anos pré-golpe e o período ditatorial, lavando a roupa suja do regime militar no Brasil.

No comportamento, o pós-punk atropelava muitos jovens brasileiros que ainda eram hippies em 1981, mas permitia um idealismo que se perdeu dos anos 90 para cá.

Enfim, a década de 1980 não foi só Xuxa, Michael Jackson, Madonna, Sylvester Stallone, Bozo, Menudo, Dr. Silvana & Cia. ou outras coisas do mainstream.

O pessoal deveria garimpar os anos 80, saindo do esquema Ploc 80, blockbusters, Rede Globo e a trinca radiofônica Transamérica-Jovem Pan-89. E fugir dos bregas daquela época.

Até os antigos trintões daquela época, tomados de um yuppismo depois convertido numa pedante nostalgia pré-1950, precisam entender melhor os anos 80.

Pessoas de cerca de 65 anos que precisam deixar de entender a complicada "década da bomba" dos anos 1940 e prestar atenção nos anos 80 que lhes ofereceu mais do que o sucesso profissional e os primeiros filhos.

Aliás, esses próprios filhos também têm que prestar atenção nos anos 80, para saber que nem tudo é Ploc 80 ou Cassino do Chacrinha (que em sua década final não era a sombra do que foi nos anos 60).

Pessoas de cerca de 35 anos que precisam aprender que o Joy Division não gravou só "Love Will Tear Us Apart" e o Cult não gravou só "Revolution" e "She Sells Sanctuary".

Os anos 80 poderiam ser então uma boa forma para pais e filhos conhecerem melhor o mundo e arejarem a mente e observarem as ondas do mar e os voos de asa delta em São Conrado.

A década de 80 foi a última em que as pessoas buscavam deixar a vida fluir. Falta hoje esse espírito arejado sepultado pela obsessão tecnológica e mercantil que trocou o idealismo pelo pragmatismo.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

FUNQUEIROS, POBRES?

As notícias recentes mostram o quanto vale o ditado "Quem nunca comeu doce, quando come se lambuza". Dois funqueiros, MC Daniel e MC Ryan, viraram notícias por conta de seus patrimônios de riqueza, contrariando a imagem de pobreza associada ao gênero brega-popularesco, tão alardeada pela intelectualidade "bacana". Mc Daniel recuperou um carrão Land Rover avaliado em nada menos que R$ 700 mil. É o terceiro assalto que o intérprete, conhecido como o Falcão do Funk, sofreu. O último assalto foi na Zona Sul do Rio de Janeiro. Antes de recuperar o carro, a recompensa prometida pelo funqueiro foi oferecida. Já em Mogi das Cruzes, interior de São Paulo, outro funqueiro, MC Ryan, teve seu condomínio de luxo observado por uma quadrilha de ladrões que queriam assaltar o famoso. Com isso, Ryan decidiu contratar seguranças armados para escoltá-lo. Não bastasse o fato de, na prática, o DJ Marlboro e o Rômulo Costa - que armou a festa "quinta coluna" que anestesiou e en

FIQUEMOS ESPERTOS!!!!

PESSOAS RICAS FANTASIADAS DE "GENTE SIMPLES". O momento atual é de muita cautela. Passamos pelo confuso cenário das "jornadas de junho", pela farsa punitivista da Operação Lava Jato, pelo golpe contra Dilma Rousseff, pelos retrocessos de Temer, pelo fascismo circense de Bolsonaro. Não vai ser agora que iremos atingir o paraíso com Lula nem iremos atingir o Primeiro Mundo em breve. Vamos combinar que o tempo atual nem é tão humanitário assim. Quem obteve o protagonismo é uma elite fantasiada de gente simples, mas é descendente das velhas elites da Casa Grande, dos velhos bandeirantes, dos velhos senhores de engenhos e das velhas oligarquias latifundiárias e empresariais. Só porque os tataranetos dos velhos exterminadores de índios e exploradores do trabalho escravo aceitam tomar pinga em birosca da Zona Norte não significa que nossas elites se despiram do seu elitismo e passaram a ser "povo" se misturando à multidão. Tudo isso é uma camuflagem para esconder

DEMOCRACIA OU LULOCRACIA?

  TUDO É FESTA - ANIMAÇÃO DE LULA ESTÁ EM DESACORDO COM A SOBRIEDADE COM QUE SE DEVE TER NA VERDADEIRA RECONSTRUÇÃO DO BRASIL. AQUI, O PRESIDENTE DURANTE EVENTO DA VOLKSWAGEN DO BRASIL. O que poucos conseguem entender é que, para reconstruir o Brasil, não há clima de festa. Mesmo quando, na Blumenau devastada pela trágica enchente de 1983, se realizou a primeira Oktoberfest, a festa era um meio de atrair recursos para a reconstrução da cidade catarinense. Imagine uma cirurgia cujo paciente é um doente em estado terminal. A equipe de cirurgiões não iria fazer clima de festa, ainda mais antes de realizar a operação. Mas o que se vê no Brasil é uma situação muito bizarra, que não dá para ser entendida na forma fácil e simplória das narrativas dominantes nas redes sociais. Tudo é festa neste lulismo espetaculoso que vemos. Durante evento ocorrido ontem, na sede da Volkswagen do Brasil, em São Bernardo do Campo, Lula, já longe do antigo líder sindical de outros tempos, mais parecia um showm

VIRALATISMO MUSICAL BRASILEIRO

  "DIZ QUE É VERDADE, QUE TEM SAUDADE .." O viralatismo cultural brasileiro não se limita ao bolsonarismo e ao lavajatismo. As guerras culturais não se limitam às propagandas ditatoriais ou de movimentos fascistas. Pensar o viralatismo cultural, ou culturalismo vira-lata, dessa maneira é ver a realidade de maneira limitada, simplista e com antolhos. O que não foi a campanha do suposto "combate ao preconceito", da "santíssima trindade" pró-brega Paulo César de Araújo, Pedro Alexandre Sanches e Hermano Vianna senão a guerra cultural contra a emancipação real do povo pobre? Sanches, o homem da Folha de São Paulo, invadindo a imprensa de esquerda para dizer que a pobreza é "linda" e que a precarização cultural é o máximo". Viralatismo cultural não é só Bolsonaro, Moro, Trump. É"médium de peruca", é Michael Sullivan, é o É O Tchan, é achar que "Evidências" com Chitãozinho e Xororó é um clássico, é subcelebridade se pavoneando

FOMOS TAPEADOS!!!!

Durante cerca de duas décadas, fomos bombardeados pelo discurso do tal "combate ao preconceito", cujo repertório intelectual já foi separado no volume Essa Elite Sem Preconceitos (Mas Muito Preconceituosa)... , para o pessoal conhecer pagando menos pelo livro. Essa retórica chorosa, que alternava entre o vitimismo e a arrogância de uma elite de intelectuais "bacanas", criou uma narrativa em que os fenômenos popularescos, em boa parte montados pela ditadura militar, eram a "verdadeira cultura popular". Vieram declarações de profunda falsidade, mas com um apelo de convencimento perigosamente eficaz: termos como "MPB com P maiúsculo", "cultura das periferias", "expressão cultural do povo pobre", "expressão da dor e dos desejos da população pobre", "a cultura popular sem corantes ou aromatizantes" vieram para convencer a opinião pública de que o caminho da cultura popular era através da bregalização, partindo d

ALEGRIA TÓXICA DO É O TCHAN É CONSTRANGEDORA

O saudoso Arnaldo Jabor, cineasta, jornalista e um dos fundadores do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC - UNE), era um dos críticos da deterioração da cultura popular nos últimos tempos. Ele acompanhava a lucidez de tanta gente, como Ruy Castro e o também saudoso Mauro Dias que falava do "massacre cultural" da música popularesca. Grandes tempos e últimos em que se destacava um pensamento crítico que, infelizmente, foi deixado para trás por uma geração de intelectuais tucanos que, usando a desculpa do "combate ao preconceito" para defender a deterioração da cultura popular.  O pretenso motivo era promover um "reconhecimento de grande valor" dos sucessos popularescos, com todo aquele papo furado de representar o "espírito de uma época" e "expressar desejos, hábitos e crenças de um povo". Para defender a música popularesca, no fundo visando interesses empresariais e políticos em jogo, vale até apelar para a fal

PUBLICADO 'ESSA ELITE SEM PRECONCEITOS (MAS MUITO PRECONCEITUOSA)'

Está disponível na Amazon o livro Essa Elite Sem Preconceitos (Mas Muito Preconceituosa)... , uma espécie de "versão de bolso" do livro Esses Intelectuais Pertinentes... , na verdade quase isso. Sem substituir o livro de cerca  de 300 páginas e análises aprofundadas sobre a cultura popularesca e outros problemas envolvendo a cultura do povo pobre, este livro reúne os capítulos dedicados à intelectualidade pró-brega e textos escritos após o fechamento deste livro. Portanto, os dois livros têm suas importâncias específicas, um não substitui o outro, podendo um deles ser uma opção de menor custo, por ter 134 páginas, que é o caso da obra aqui divulgada. É uma forma do público conhecer os intelectuais que se engajaram na degradação cultural brasileira, com um etnocentrismo mal disfarçado de intelectuais burgueses que se proclamavam "desprovidos de qualquer tipo de preconceito". Por trás dessa visão "sem preconceitos", sempre houve na verdade preconceitos de cl

FLUMINENSE FM E O RADIALISMO ROCK QUE QUASE NÃO EXISTE MAIS

É vergonhoso ver como a cultura rock e seu mercado radiofônico se reduziram hoje em dia, num verdadeiro lixo que só serve para alimentar fortunas do empresariado do entretenimento, de promotoras de eventos, de anunciantes, da mídia associada, às custas de produtos caros que vendem para jovens desavisados em eventos musicais.  São os novos super-ricos a arrancar cada vez mais o dinheiro, o couro e até os rins de quem consome música em geral, e o rock, hoje reduzido a um teatro de marionetes e um picadeiro da Faria Lima, se tornou uma grande piada, mergulhada na mesmice do hit-parade . Ninguém mais garimpa grandes canções, conformada com os mesmos sucessos de sempre, esperando que Stranger Things e Velozes e Furiosos façam alguma canção obscura se popularizar. Nos anos 1980, houve uma rádio muito brilhante, que até hoje não deixou sucessora à altura, seja pelos critérios de programação, pelo leque amplo de músicas tocadas e pela linguagem própria de seus locutores, seja pelo alcance do s

LULA, O MAIOR PELEGO BRASILEIRO

  POR INCRÍVEL QUE PAREÇA, LULA DE 2022 ESTÁ MAIS PRÓXIMO DE FERNANDO COLLOR O QUE DO LULA DE 1989. A recente notícia de que o governo Lula decidiu cortar verbas para bolsas de estudo, educação básica e Farmácia Popular faz lembrar o governo Collor em 1991, que estava cortando salários e ameaçando privatizar universidades públicas. Lula, que permitiu privatização de estradas no Paraná, virou um grande pelego político. O Lula de 2022 está mais próximo do Fernando Collor de 1989 do que o próprio Lula naquela época. O Lula de hoje é espetaculoso, demagógico, midiático, marqueteiro e agrada com mais facilidade as elites do poder econômico. Sem falar que o atual presidente brasileiro está mais próximo de um político neoliberal do que um líder realmente popular. Eu estava conversando com um corretor colega de equipe, no meu recém-encerrado estágio de corretagem. Ele é bolsonarista, posição que não compartilho, vale lembrar. Ele havia sido petista na juventude, mas quando decidiu votar em Lul

BRASIL NO APOGEU DO EGOÍSMO HUMANO

A "SOCIEDADE DO AMOR" E SEU APETITE VORAZ DE CONSUMIR O DINHEIRO EM EXCESSO QUE TEM. Nunca o egoísmo esteve tão em moda no Brasil. Pessoas com mão-de-vaca consumindo que nem loucos mas se recusando a ajudar o próximo. Poucos ajudam os miseráveis, poucos dão dinheiro para quem precisa. Muitos, porém, dizem não ter dinheiro para ajudar o próximo, e declaram isso com falsa gentileza, mal escondendo sua irritação. Mas são essas mesmas pessoas que têm muito dinheiro para comprar cigarros e cervejas, esses dois venenos cancerígenos que a "boa" sociedade consome em dimensões bíblicas, achando que vão viver até os 100 anos com essa verdadeira dieta do mal à base de muita nicotina e muito álcool. A dita "sociedade do amor", sem medo e sem amor, que é a elite do bom atraso, a burguesia de chinelos invisível a olho nu, está consumindo feito animais vorazes o que seus instintos veem como algo prazeroso. Pessoas transformadas em bichos, dominadas apenas por seus instin