Um dos maiores cineastas e intelectuais brasileiros nos deixou.
Arnaldo Jabor, com 82 anos incompletos, havia sofrido complicações de um acidente vascular cerebral que teve há alguns dias, faleceu após manifestar-se desilusão com os últimos tempos.
Cineasta notabilizado pelo filme A Opinião Pública, um instigante documentário de 1967, e cujo último trabalho no cinema foi dirigindo e roteirizando A Suprema Felicidade, de 2010, ele começou sua carreira no movimento estudantil, como articulista, editor de arte e poeta.
Ele era membro da União Metropolitana de Estudantes do Estado da Guanabara e, também ligado à União Nacional dos Estudantes, foi um dos fundadores do Centro Popular de Cultura.
O CPC da UNE, que descrevi no meu livro 1961 - O Ano Que Havíamos Esquecido, é um subestimado projeto, dedicado a debater a cultura brasileira, mas que a narrativa pós-1985 passou a definir como "ideológico demais".
Paciência. Em 1985, chegou ao poder uma intelectualidade neoliberal comandada por Fernando Henrique Cardoso e fundadora do PSDB em sua fase agora considerada "clássica".
Dessa intelectualidade, também fez parte Francisco Weffort, que também chamou o Instituto Social de Etudos Brasileiros de "ideológico". Weffort foi um dos fundadores do PT, mas foi um dos primeiros "petistas de alma tucana" no partido.
E hoje vemos o quanto o neoliberalismo agora contamina o próprio Lula, agora convertido num "ursinho de pelúcia" do tucanato "histórico", cerca de uma década depois do culturalismo popularesco contaminar as esquerdas brasileiras.
Arnaldo Jabor era de outros tempos. Foi um dos membros do Cinema Novo e um grande amigo de Glauber Rocha, de quem era saudoso do convívio vibrante e das ideias ousadas do diretor de Terra em Transe.
Eram tempos em que se discutiam cultura. Um exemplo é que hoje se glamouriza o comercialismo do Carnaval carioca, mas li, no livro Música Popular: Um Tema em Debate, de José Ramos Tinhorão, que o espírito carnavalesco original morreu em 1965, ano dos 400 anos da cidade do Rio de Janeiro.
É porque a folia original do povo dos morros deu lugar a um comercialismo que corteja celebridades e é patrocinado pelo empresariado e pelo coronelismo carioca, os banqueiros do jogo-do-bicho.
Daí que Jabor foi um dos cronistas brilhantes nos anos 1990 e, em parte, os anos 2000, antes de se tornar um radical opositor do governo Lula.
E a crônica de Jabor voltou por acaso. Lembremos que, antes de ser cineasta, Jabor era articulista de periódicos estudantis. Isso porque o então presidente Fernando Collor extinguiu a Embrafilme e o cinema brasileiro ficou sem financiamentos para a produção de filmes.
E o que Jabor fez para se manter ocupado? Virou colunista de jornal e, mais tarde, comentarista de televisão. Durante muito tempo fez comentários no Jornal Nacional da Rede Globo.
Arnaldo Jabor não era ator, mas nesses comentários do JN ele tinha uma dramaticidade admirável, autêntica e vigorosa, mesmo quando suas opiniões desagradassem aqui e ali. Era, sem dúvida, uma figura, diante da telinha de TV.
Quando os anos 1990 foram palco de uma queda vertiginosa da cultura brasileira, com a ascensão dos fenômenos popularescos a níveis galopantes, Jabor foi uma eventual voz contra a imbecilização cultural.
Ele expressava, em suas colunas, uma autocrítica que abriu caminho para o golpe de 1964: a visão idealizada do subdesenvolvimento brasileiro, trazida pelos filmes do Cinema Novo, reduzindo a pobreza a uma narrativa mais poética do que contestatória.
E olha que a miséria humana descrita nesses filmes era mais realista. E tivemos a gourmetização da pobreza nas chanchadas da Atlântida, alvo de severas críticas dos cinemanovistas.
E ver que hoje o tal "combate ao preconceito" - ver Esses Intelectuais Pertinentes... - mostra uma caricatura pior do povo pobre e uma espetacularização da miséria, do subdesenvolvimento e do viralatismo cultural, é algo assustador.
Eu não tive contato com o cinema de Jabor, eu posso mais falar do Jabor ensaísta, este sim eu li muito quando era estudante da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia.
Ele, que havia sido esquerdista nos seus tempos estudantis, passou a ser um dos opositores do governo Lula e, inicialmente, defensor do golpe político contra Dilma Rousseff, do qual depois se arrependeu.
Nos últimos tempos, ele foi um crítico do governo Bolsonaro, e havia admitido que as manifestações do "Fora Dilma" eram feitos por gente rica, não por aqueles que não aceitavam aumento de R$ 0,20 nas tarifas de ônibus.
O aparente direitismo de Jabor eu considero que deve ser algo semelhante com o que ocorreu com Lobão.
É uma combinação de ressentimento e saudosismo, pelas perdas de dois grandes amigos e de personalidades marcantes.
Arnaldo Jabor perdeu Glauber Rocha e Nelson Rodrigues, assim como Lobão perdeu Júlio Barroso e Cazuza.
Talvez por comparar as personalidades dos falecidos com o "espírito do tempo" do presente, os dois passassem a sentir um desgosto com as convencões do momento, sempre voltadas para a complacência com os retrocessos dos últimos tempos.
E hoje, com Lula de mãos dadas com o tucanato "histórico", estamos repensando o antipetismo que havia sido irracional há cerca de uma década. Será que os opositores de Lula têm razão? Ou será que o Lula virou antítese de si mesmo, traidor de suas próprias raízes trabalhistas?
Até quando fala em combater a fome e promover o emprego, Lula mais parece um paternalista, como se ele estivesse se esquecido de sua origem como torneiro mecânico. Sua disposição em "dialogar" com a direita moderada sinaliza esse triste desfecho da carreira de Lula.
Em que pese Jabor ter desagradado em muitas opiniões, ele exercia, nos anos 1990, o senso crítico que era discriminado pelos meios acadêmicos, cada vez mais fazendo de mestrandos e doutorandos um bando de flanelinhas intelectuais, "passando o pano" em problemas cotidianos.
E ver que estão desaparecendo personalidades que tocam os dedos nas feridas desse Brasil é assustador, ainda mais tendo aqui uma classe média é careta, atrasada, narcisista e idiotizada que fica se achando o tempo inteiro.
Ficamos sem o pensamento crítico de Arnaldo Jabor, justamente quando nosso país vive tempos distópicos muito mal disfarçados pela positividade tóxica do Brasil-Instagram.
Fica sua missão histórica, seus cerca de 60 anos de atividade como cineasta, poeta, escritor, articulista, produtor, ativista e intelectual.
Ficam suas lições, agora que ele se soma à imensa galeria de personalidades mortas que serão o farol do futuro para os pós-mileniais que, no Brasil, acordarem desse pesadelo culturalmente idiotizado dos últimos anos. Enquando isso não ocorre, o Brasil adormece no seu subdesenvolvimento enrustido.
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