Num país que é considerado o "deserto" do senso crítico, que é o Brasil, onde a ideia é ser um flanelinha cultural e passar pano em qualquer coisa, ter opiniões contestatórias é bem complexo.
Recentemente morreram dois praticantes desse hábito incomum de tocar o dedo na ferida, José Ramos Tinhorão e Arnaldo Jabor, além de, indo mais atrás, de um Mauro Dias falando da música popularesca como um "massacre cultural sem precedentes".
E só agora descobri que Mauro Dias, falecido em 2016, era nascido em Florianópolis e criado em Niterói.
Eu sou nascido em Florianópolis e fui criado em Niterói. E o artigo de Mauro Dias foi publicado no Estadão, e desde fevereiro de 2021 sou um quase vizinho do jornal da família Mesquita.
Em contrapartida, Mauro Dias era xará de Mauro Ferreira, um jornalista brilhante, excelente profissional e muitíssimo informativo, até passar o pano nos fenômenos da música popularesca.
Mas isso até o Ricardo Cravo Alvim faz, o Dicionário MPB é uma verdadeira Casa da Mãe Joana da música brasileira. Uma "casa da sogra" que até vale como pesquisa, desde que você, leitor (a), não leve a sério os nomes popularescos.
(E recentemente perdemos Paulinha Abelha, do horrendo Calcinha Preta, e aqui ficam os lamentos do óbito como pessoa mas musicalmente ela não deixou contribuição alguma para a MPB).
E hoje ter senso crítico é um trabalho de risco, diante dos ataques das milícias digitais e os internautas sociopatas que ficam curtindo tudo aquilo que é "estabelecido" e que não aguentam que alguém critique uma tosse que seu ídolo der no palco.
Paciência. É a tal milícia Talifã. Fundamentalismo popularesco ou irrit-pareide. Gente que não suporta crítica negativa ao seu ídolo e sai por aí atirando contra quem não gosta dele. Até parece que se preocupam mais com a oposição ao ídolo popularesco do que ao seu próprio fã-clube.
Paciência. O Brasil carrega uma pedagogia sociocultural trazida pelo AI-5, com o imaginário popular e o bom senso dominados por uma classe média que se acha "isenta" e "ilustrada" e que foi formada num sistema de valores propagado pelo "milagre brasileiro" e reforçado pelas Eras Geisel, Collor e FHC.
Dito isso, vamos para o mais novo escândalo marcado por alguém conhecido por um senso crítico bastante afiado, o cantor e compositor Ed Motta.
Ele já foi feliz ao criticar o público de música popularesca de "simplório", embora ele tenha provocado tanto escândalo que, depois, resolveu passar pano, creio que de mentirinha, no cantor Pabblo Vittar, com elogios que eu desconfio serem falsos e feitos só para amansar a "nação de simplórios".
Até porque Pabblo Vittar canta muito mal e sua música é ruim pacas.
Mas aí ele partiu para comentários contra quem não necessitaria ser atacado, com todas as imperfeições que possam apresentar.
Nem vou alongar muito nos comentários sobre Elvis Presley, que Ed definiu como "idiota", e sobre Johnny Cash, que, se estivesse vivo, "levaria um soco" do cantor brasileiro, que, pelo jeito, desconhece o jeito durão e a personalidade forte que o músico country teve em sua vida.
Até porque são grosserias que não precisam ser analisadas, porque falam por si mesmas.
Mas sobre Raul Seixas, vale aqui parar um pouco. Até porque falar mal de Raulzito criaria outros problemas, diante do cacoete iconoclasta que quer derrubar quem não deve enquanto, por omissão, acaba passando pano em coisas piores.
O que Ed Motta disse sobre Raul Seixas?
Em resumo: Ed definiu o roqueiro baiano como "artista horrível", "funcionário de gravadora que lutou contra outros artistas", e que a única coisa que prestava eram as letras de Paulo Coelho.
Ed disparou até palavrão para definir Raul Seixas, na sua arriscada iconoclastia.
É certo que a música "Carimbador Maluco", da forma como foi gravada, parece muito idiota, mas isso não é culpa de Raul Seixas, mas da mixagem horrível da canção, extremamente pasteurizada, e que simplesmente não valoriza a instrumental que um roqueiro baiano merece.
O próprio Raul reclamava das mixagens dos discos gravados entre 1980 e antes do ótimo Panela do Diabo, feito em parceria com Marcelo Nova (outro com brilhante senso crítico que, depois foi passar pano em Charlie Brown Jr. e Raimundos e recentemente virou negacionista anti-vacina).
É certo que nomes como Raul Seixas e Elis Regina, ou, para citar alguém que continua vivo, como Chico Buarque, são alvos de críticas pesadas.
É certo, também, que é mais fácil atacar um nome realmente talentoso que está no auge da popularidade do que um canastrão musical que faz sucesso mas que finge não morar no alto de seu pedestal.
Temos gente que precisa ser criticada, rejeitada e repudiada, e que no entanto é poupada até de ataques tímidos e demasiado comedidos.
Na música brasileira, temos canastrões como Ivete Sangalo, Alexandre Pires, Chitãozinho & Xororó, Michael Sullivan e Bell Marques que só recebem passagem de pano, rasgação de seda e por aí vai.
Bell Marques, por exemplo, é um cantor e compositor tão ruim que nem a aplicação do padrão ISO 9000 de qualidade fará o ídolo da axé-music chegar a 1% do talento do saudoso Moraes Moreira.
E é assustador como a mediocridade cultural dos anos 1990 passou a ser gourmetizada como se fosse algo genial, quando sabemos que se tratam de aberrações às quais o povo e mesmo muita gente culta passou a se acostumar mal.
Daí que não é que esses canastrões do neo-brega dos anos 1990 tiveram sua "genialidade oculta" reconhecida. Eles continuam tão horríveis quanto antes. O problema é que as pessoas se acostumaram tanto com eles que eles não incomodam, o que dá a falsa impressão de que eles ficaram "adoráveis".
São zonas de conforto de uma mediocrização gourmetizada, dentro da flanelização cultural em que vivemos, onde, no mercado literário, problemas são sempre fenômenos estrangeiros, situados num tempo ou num passado distantes.
Problemas são dramalhões canadenses de mocinhas adolescentes atormentadas, distopias sul-coreanas, dramas surreais eslavos, fora os "grandes mistérios" de sagas medievais duplamente distantes, no espaço (países nórdicos) e no tempo (entre os séculos V e XVI).
Na religião, se preocupa em chutar cachorros mortos, querendo linchar amanhã o neopentecostal que foi derrubado ontem.
Enquanto isso, no Espiritismo brasileiro temos o caso de um "médium" farsante, deplorável, autor de literatura fake, apoiador da ditadura militar e que sentia fetiche por jovens mortos que é alvo da mais absoluta, idiota e viciada complacência, sobretudo a poucos meses de celebrar 20 anos de morto.
E falamos do Espiritismo brasileiro que teve a covardia de apresentar um falso Raul Seixas, realmente idiotizado e ruim, muito mal disfarçado pelo codinome Zílio, em mensagens "espirituais" horripilantes que apelavam até para o moralismo individual do "inimigo de si mesmo".
Voltando ao "médium de peruca", ninguém critica ele, postumamente aplaudido até em seus piores erros, como ofender a gente humilde de Niterói que sofreu a tragédia do incêndio em um circo, no fim de 1961, e foi acusada de "pagar pelo que deve por conta de suposta encarnação antiga".
Mas há quem deveria repudiar o tal "médium", contestá-lo e criticá-lo severamente, mas que, atraído pelo visual cafona de uma peruca horrenda, óculos Ray-Ban grosseiros e paletós velhos fedendo a mofo tóxico e pela "caridade padrão Luciano Huck" do "médium", prefere passar pano.
E passa-se pano no "médium", mais do que em mesa cheia de poeira. E isso em favor de um ídolo religioso retrógrado, charlatão, pseudo-caridoso e reacionário, com visual anos 1940 e ideias do século XII, mas que é considerado, pasmem, o "dono do futuro de todos os brasileiros".
E aí os críticos preferem falar mal de um suposto racismo de Allan Kardec, esquecendo o contexto da época, enquanto deixa passar um racismo pior do pavoroso "médium de peruca", que chamou os negros de "selvagens sem consciência humana" e os índios de "ingênuos e infantis".
E isso mostra o tom da complacência humana, que pode ser comparada com uma metáfora envolvendo o ambiente escolar.
Digamos que o senso comum e a chamada opinião (que se pretende) pública são personificados por um professor, avaliando as provas dos alunos.
O professor decide reprovar quem, de um a dez, tenha tirado de cinco a nove na prova, enquanto deixa passar de ano aqueles que tiraram de um a quatro.
Imaginamos que não dá para aprovar quem tirou zero porque a reprovação é evidente e também não se pode reprovar quem tirou dez porque sua aprovação é amplamente reconhecida.
Mas, dentro das conveniências que prevalecem no nosso tão decadente Brasil, a desigualdade social se estende até mesmo nas avaliações humanas, preferindo derrubar quem realmente tem talento, aqui e lá fora, do que repudiar quem merece ser repudiado, mas que vira alvo até de tolas idolatrias.
E, assim, Ed Motta, com tanto ídolo popularesco para ser criticado e rejeitado, foi logo atacar o grande roqueiro Raul Seixas, complicando ainda mais a já complicada decadência cultural do Brasil.
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