Ninguém vai votar em Lula. Votando em Lula, o pessoal votará, na verdade, em Geraldo Alckmin, o freio que irá brecar as ousadias do presidente, de forma a reduzir todo o projeto progressista a projetos paliativos de combate à fome e o desemprego, sem mexer nos privilégios nababescos tanto da elite do atraso (a classe média "esclarecida" e "sabedora das coisas") quanto do poder financeiro e empresarial associado a essa mesma elite.
Para entendermos a situação, citemos um episódio que, aparentemente, nada tem a ver. Recentemente, o filho do cartunista Maurício de Sousa, Maurício Takeda, pagou R$ 14,5 mil para comprar uma placa de vídeo. No entanto, ao receber a mercadoria, em vez do produto solicitado, veio uma caixa de areia.
A situação no Brasil está tão complexa que não se permite encarar os fatos com ingenuidade e pensamento desejoso, este sobretudo através de sua forma mística, a fé religiosa. Geraldo Alckmin, escolhido para ser vice de Lula, não aderiu à chapa porque, à beira dos 70 anos, o ex-tucano descobriu o socialismo e passou a se identificar naturalmente com as pautas esquerdistas.
Não. Mediante um acordo político que será melhor percebido com o tempo, Lula saiu da prisão sob a garantia de que incluirá um político conservador na sua chapa presidencial. Compreender isso é tão simples que não precisa ser especialista para sacar que Lula não manterá integralmente suas pautas progressistas, a serem seriamente sacrificadas.
A chapa de Lula e Geraldo Alckmin não será uma tradução invertida da chapa Juscelino Kubitschek e João Goulart. Não vai haver aquele grande desenvolvimentismo, com empresas públicas fortalecidas e aparelho estatal ampliado. Não haverá cobrança de impostos aos mais ricos, pois boa parte deles ajudará Lula a ser eleito e ninguém agradece os amigos exigindo dinheiro.
Alckmin não será um desenvolvimentista à maneira de Juscelino. Ele será um neoliberal correto, apenas. Alckmin saiu do PSDB, mas o PSDB nunca saiu dele. Para quem falava lavajatês em 2018, é impossível esperar do vice de Lula um progressista entusiasmante e eficiente.
E isso é tão certo, porque Alckmin nunca deu uma única declaração de autocrítica, de arrependimento quanto aos antigos erros, e nem deu sinais de que mudou de fato. Tudo o que ele fez de "diferente" nos últimos meses foi encenação. Portanto, não há como garantir que Alckmin, mesmo com o tal "banho de povo", esteja realmente identificado com o projeto de Lula.
Muito pelo contrário, Lula sinaliza que é ele que entrega os pontos. Não é opinião minha, observo juntando as peças de um quebra-cabeça de fatos e de ideias. Lula está visivelmente com o semblante cansado, sua calvície não é um processo natural de alguém que perde naturalmente seus cabelos, mas um sinal de alguma doença grave, alguma fragilidade. Lula não é só um idoso, teve câncer e era fumante no passado.
Mas não se trata somente de entregar os pontos pela fragilidade física. Lula está escondendo o jogo a respeito do verdadeiro motivo de enfatizar alianças divergentes ao seu projeto político. Seríamos ingênuos se acreditarmos - mas, infelizmente, muita gente boa acredita - que Lula se aliou à direita moderada para promover "a democracia, o diálogo e a união".
Existe uma grande diferença entre dialogar com opositores e se aliar a eles. Ninguém leva o inimigo para a cama, para dormir junto, em nome do "entendimento" e do "diálogo democrático". Há um distanciamento possível entre esquerda e direita moderada que permitiria um diálogo menos "cúmplice", é verdade, mas com algum entendimento. Não precisa haver aliança para isso.
Mas se Lula está levando para sua cama a direita moderada, é sinal que algo está estranho. A direita moderada não tolera uma considerável parte de propostas do projeto progressista de Lula. Além disso, a estranha ênfase com que Lula tenta explicar essas alianças, porque "sem elas não venceria as eleições e falaria só com convertidos", faz com que uma pessoa com um pingo de consciência desconfiasse do petista.
Lula enfatiza que Geraldo Alckmin não será um vice decorativo, que vai governar junto com o petista. E mais: Lula disse que não vai decidir as coisas se não consultar Alckmin, o que derrubou de vez a tese de que é o petista que "decide tudo" e "fica com a palavra final das coisas".
Lula também não elaborou um projeto de governo com o PT. O programa teve a participação de partidos como PSB, PC do B, PV e Rede, mas também incluiu o próprio Geraldo Alckmin como autor de várias propostas. Isso sepulta de vez qualquer chance de Lula implantar propostas mais ousadas. A ideia de um Estado forte e medidas como a cobrança de impostos para os mais ricos não passarão de grandes miragens eleitorais.
Há três hipóteses, mas todas levam à constatação de que quem governará mesmo é Geraldo Alckmin. Uma é no caso de Lula morrer de repente, outra no caso de Lula renunciar por restrições médicas, e outra no caso de Lula permanecer no cargo até o fim, aparentemente sem problemas. Em todas as hipóteses, Alckmin terá poder de decisão que prejudicará seriamente o projeto de Lula.
Mesmo com Lula vivo, Alckmin será o freio para projetos progressistas mais ousados. Tudo se reduzirá a medidas paliativas que não irão prejudicar os privilégios dos mais ricos. Daí que devemos verificar o quanto as elites rentistas, que derrubaram Dilma Rousseff, abriram o tapete vermelho para Michel Temer e Jair Bolsonaro andarem e torceram para que Lula fosse preso em 2018, agora defendem o mesmo Lula para ser eleito presidente do Brasil.
As elites se entusiasmam com um Lula castrado por Geraldo Alckmin, assim como, em 1961, se animaram com João Goulart engessado pelo parlamentarismo. E é isso que traz ainda mais estranheza. E que fará Lula fazer um governo mais fraco do que os dois anteriores, num extremo oposto às promessas que ele fez ainda no ano passado.
Hoje Lula sinaliza ser um candidato "qualquer nota". Com as promessas sonhadoras não sendo levadas a sério - a realidade é dura demais para elas serem realizadas - , Lula agora só tem a seu favor a missão de "derrotar Bolsonaro".
Só que o preço caro dessa festa toda é que, com Lula eleito, quem governará de fato será Geraldo Alckmin. O lado técnico, racional, será ligado ao neoliberalismo irredutível de Alckmin, que ficará com assuntos como Economia, Planejamento, Infra-estrutura, Tecnologia. Alckmin será o cérebro, Lula será o coração.
Tudo indica que Lula ficará apenas com os projetos de grife, que serão pretexto para o eufemismo do "Estado forte": Bolsa Família, Mais Médicos, Fome Zero, Cotas Universitárias, Minha Casa Minha Vida. Projetos sociais que trazem algum benefício, mas não mexem nos privilégios das elites.
Na melhor das hipóteses, o provável próximo governo de Lula tende a ser como o primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, com alguma estabilidade econômica, controle de preços, algum desenvolvimento industrial, normalidade institucional e democrática.
Pode ser bem melhor do que Jair Bolsonaro, mas muito distante da expectativa de fazer o Brasil ser feliz de novo. Se o brasileiro tiver menos raiva e medo, já será alguma coisa. Brasileiro voltar a sonhar? Só por parte das esquerdas alucinadas com Lula. No contexto em que vivemos, precisaremos mais de realidade e não de sonhos, para que não corramos o risco de cairmos em um novo pesadelo.
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