O ataque do Hamas, um dos grupos radicais em atividade no Oriente Médio, que atingiu a Faixa de Gaza, seguido de outros ataques que atingiram a mesma região e também a Cizjordânia, mostram que não é fácil o tal "mundo multipolar". As tensões mundiais mostram que não é momento para a pieguice.
É muito longo o problema do Oriente Médio e a recente tragédia matou mais de 1100 pessoas. Não deixa de ser tristemente ilustrativo que, ontem, 260 mortos foram encontrados onde iria ocorrer uma rave brasileira, o Universo Paralelo, na área atingida em Israel. Justamente num tempo em que, no Brasil, "qualidade de vida" acabou sendo sinônimo de diversão e hedonismo identitário, fruto de uma classe média ganhando dinheiro fácil para curtir o supérfluo e se achar "dona do mundo".
O episódio é complexo e puxa diversas reflexões. Envolve o fundamentalismo religioso no país cuja área, segundo a tradição, corresponde ao lugar onde nasceu, viveu e morreu Jesus Cristo. O fundamentalismo religioso, que no Brasil não contamina somente os neopentecostais como setores reacionários do Catolicismo e o "movimento espírita" como um todo - incluindo a adoração de um "médium" pretensamente caridoso, que usava peruca e, mesmo morto, continua sendo mais blindado do que ouro em cofre de magnata - , produz os sentimentos tóxicos que levam à violência.
Sou a favor da criação do Estado Palestino, uma luta hoje tão longa como foi a luta pelo Estado de Israel. Por ironia, Israel tornou-se país cliente dos EUA e se alimenta da tirania fascista do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que pouco tempo atrás era "amigo de infância" de Jair Bolsonaro. Mas não é a melhor maneira de defender a causa palestina as ações terroristas de grupos como o Hamas, sendo preferível haver uma ação combativa sem armas, mas com protestos de ruas e campanhas na Internet.
A causa palestina também faz pensar a respeito da própria supervalorização de agenda. Sim, a causa palestina é uma causa importante e deve ser apoiada, mas é um assunto estrangeiro. Nos tempos do Mingau de Aço, a mídia de esquerda tratava os temas do Oriente Médio como se eles ocorressem não no Oriente Médio, mas no bairro de Santa Cecília, aqui em São Paulo.
Havia um quase monopólio dos temas palestinos na mídia de esquerda brasileira, como se fossem pautas brasileiras, enquanto no Brasil propriamente dito reinava a agenda identitarista da bregalização cultural e da mal-disfarçada domesticação do povo pobre, cortejada através, principalmente, da defesa do "funk", se esquecendo que este ritmo brega-popularesco nasceu sob os mesmos contextos sociais do jogo-do-bicho, das milícias, do narcotráfico e do bolsonarismo.
Se transplantarmos o contexto do Oriente Médio para o Brasil, a bregalização ("Abreganistão"?) seria como se o poder conservador israelense sequestrasse a causa palestina. E aqui no Brasil nem é preciso jogar bombas nas comunidades populares, pois as favelas nasceram degradantes, são um acinte imobiliário que a elite do bom atraso acha "lindo", porque não é ela que mora nessas casas.
É preocupante ver que, aqui, o fundamentalismo culturalista, que trafega fora do perímetro bolsolavajatista, tenta transformar as favelas em "Disneylândias suburbanas", como se o povo pobre respirasse Carnaval 25 horas por dia, 35 dias por mês e 370 dias por ano.
É uma manipulação do imaginário popular que está a serviço de um fundamentalismo de um grupo de intelectuais, acadêmicos e cineastas documentaristas que se fingem de coitadinhos enquanto são financiados secretamente por grandes empresas, várias delas estrangeiras e cujo horizonte ideológico não é muito diferente do que conduz a tirania israelense.
O pior é que a situação está cada vez mais complicada, na medida em que os brasileiros que hoje sentem uma positividade tóxica fogem, com muito medo, de textos questionadores, principalmente quando vemos que o governo Lula 3.0 está muito aquém das performances dos dois mandatos anteriores que, se não eram revolucionários, eram até muito bons. Hoje vemos Lula perdido entre um neoliberalismo assistencialista e um esquerdismo demasiado utópico.
O povo pobre de verdade, aquele que não aparece na festiva canção brega-popularesca, tem o drama semelhante ao povo palestino, oprimido, sem lugar nobre na sociedade, convivendo hoje, no depósito de lixo armado tanto pela bolha bolsonarista quanto pela bolha lulista, com os intelectuais genuínos sem medo de questionar, dos solitários caseiros que querem o sossego de uma vida sensível, enfim, o Brasil de Lula 3.0 está, mesmo sem querer, sufocando aqueles que querem se emocionar e pensar sem aderir ao ritmo frenético do identitarismo hedonista da trinca "fé, futebol e bebedeira".
Ou seja, temos um fundamentalismo lúdico, que, por ironia, esbarrou nos ataques do Hamas. O hedonismo festivo do Brasil, que em suas aventuras de tentar dominar simbolicamente o mundo, sem que a tal reconstrução do nosso país tivesse um levantamento oficial de que ocorreu ou ainda vai ocorrer, foi "atropelado" pelo terrorismo de um grupo radical palestino, contabilizando mais mortos do que o incêndio na boate Kiss, em Santa Maria (RS), em 27 de janeiro de 2013.
Vivemos num mundo ainda tóxico, e a positividade tóxica não é diferente. Em minhas idas e voltas de um estágio, aqui em São Paulo, eu vi os bares e boates lotados de gente ávida em consumir cerveja em quantidades industriais e contando piadas com risadas histéricas.
Temos também as emoções tóxicas do futebol, como pude ver numa torcida organizada que passou pelo Largo de Pinheiros, na semana passada, e tem também a obsessão de religiões como os neopentecostais e o Espiritismo brasileiro, que tentam transformar as redes sociais na extensão de suas igrejas, em vez de cultuar a fé dentro de seus espaços específicos.
Como se vê, a positividade tóxica do Brasil traz um alerta de futuros fundamentalismos, mesmo sob o verniz "democrático". Sob Lula 3.0, o progressismo ficou refém de uma classe cheia da grana mas tida como "a mais legal do planeta", com muito complexo de superioridade e se achando dona de tudo, do povo pobre ao planeta Terra. Gente que expulsa os verdadeiros humanistas do mercado de trabalho, dos espaços civilizados de convivência, do processo de formar opinião.
Este Brasil dos "bacanas" é um Brasil moldado por uma elite empresarial que "desenhou nosso país" desde o "milagre brasileiro" da ditadura militar e, completando esse "desenho" nos últimos anos, pensa em impor ao mundo um padrão de Brasil - que não é o modelo de vida condizente com a realidade do verdadeiro povo brasileiro, que não aparece nas narrativas da mídia hegemônica ou das redes sociais - , como se a mediocridade e a imbecilização culturais fosse algo de "superior" na humanidade planetária.
Isso é catastrófico. A gente vê países considerados emergentes mas fora do clube dos BRICS, como Ucrânia e Israel, sendo palcos de violentas guerras que dizimam pessoas inocentes, e vemos o Brasil tenso de notícias violentas trazidas pela mídia. E temos que conviver com uma positividade tóxica que influi até no mercado de trabalho, que prefere empregar gente "divertida" do que talentosa, e num modelo de vida viciado das pessoas que amanhecem beatas e anoitecem bebuns. O medo é o Brasil virar a Israel de amanhã.
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