Diante da repercussão negativa e chocante de um conhecido "médium espírita" manifestando defesa dos atos terroristas de Oito de Janeiro, juntando as abordagens de dois textos, um do portal UOL, da coluna de Chico Alves, e outro do Brasil 247, da coluna de Neggo Tom, em que pese as boas intenções dos colunistas, ambos pecam pelo fato de que ignoram a verdadeira raiz do problema: um outro "médium" que abriu as porteiras para tamanhos abusos.
Esse "médium", que não vou citar o nome por razões antes citadas, mas dá para os leitores saberem que tem o mesmo prenome de um dos colunistas, foi um dos piores deturpadores da Doutrina Espírita em toda sua trajetória, e, para fazer um trocadilho, transformou o legado de Allan Kardec num "espiritismo de chiqueiro".
Há um costume da sociedade em passar pano nos erros desse "médium", embora sobre ele pesam aspectos bem sombrios, como o apoio radical da ditadura militar - postura nunca corrigida mesmo com a redemocratização - e o consentimento com a morte suspeita de um sobrinho que iria denunciar as fraudes do famoso religioso em 1958. O "médium" é beneficiado por uma blindagem levada às últimas consequências, ninguém se encoraja a investigá-lo, apesar desse passado sombrio.
Infelizmente, o Brasil de hoje vive uma certa amnésia histórica e factual, como se nosso país só existisse desde 1974. As narrativas tentam fazer crer que, fora alguns fatos manjados anteriores a esse ano, quase nada aconteceu no nosso país. Culturalmente falando, o Brasil regrediu nos últimos 49 anos a ponto de, em certos aspectos, estarmos piores do que em 1963.
E aí vemos que uma religião que se fundamentou na mera repaginação do Catolicismo medieval, aproveitando apenas a fachada da novidade kardeciana, só consegue ser contestada parcialmente. As supostas psicografias, mesmo apresentando aspectos farsantes, não são contestadas nem banidas do mercado, como se fosse possível um escritor morto apresentar um estilo e uma personalidade diferentes de quando estava vivo.
O conteúdo religioso do Espiritismo brasileiro, trazido pelo tenebroso "médium de peruca", ainda hoje adorado como se fosse um suposto filantropo - com base em uma idolatria ilusória que, no exterior, beneficia a Madre Teresa de Calcutá, transformada em "santa" devido a um suposto milagre inventado de uma mal-disfarçada intoxicação alimentar creditada como "câncer terminal" - , remete à Teologia do Sofrimento, o "holocausto do bem", que a "boa" sociedade tem a covardia de creditar como uma corrente religiosa "progressista".
Há muitos aspectos sombrios da trajetória desse "médium" que mais parece um "tucano de Deus", se compararmos aos tempos em que o tucanato (os políticos do PSDB "clássico", denunciados por escândalos como a "privataria tucana", o "trensalão", o "caso Banestado" e outros) gozava da mais aberta e escancarada impunidade. Coisas de fazer a franquia de terror Sexta Feira 13 parecer os Ursinhos Carinhosos.
Em 1944, o escandaloso caso da usurpação do nome do escritor Humberto de Campos, autor que em nenhum momento escreveu uma vírgula do que se atribui como sua "obra espiritual", quase botou o "médium" na cadeia. Um juiz suplente com um apetite de "justiça seletiva" comparável ao de Sérgio Moro recentemente, resolveu não só cancelar o caso alegando "improcedência" como ainda condenou a viúva de Humberto a pagar os custos advocatícios, lembrando muito a "justiça" que Michel Temer instituiu contra os empregados que processassem seus patrões e perdessem a causa.
Quem compara as obras de Humberto de Campos original (mesmo a publicada postumamente) com a suposta obra espiritual, verá, através de muita atenção, que os estilos são completamente diferentes. O fluente escritor neoparnasiano e quase modernista que viveu entre nós deu lugar a um escritor de prosa muito cansativa de se ler e com temáticas monótonas, que alternavam entre o igrejismo mofado e o moralismo punitivista.
Para piorar a impunidade que o "médium" de Uberaba recebeu da Justiça, ele conseguiu interromper o litígio na Justiça - os familiares herdeiros do lesado escritor recorreram da sentença que julgou o processo "improcedente" - ao armar uma emboscada religiosa na citada cidade mineira, para assediar o filho homônimo do escritor, Humberto de Campos Filho, produtor de TV certa vez fotografado ao lado de Hebe Camargo (por sinal, uma das muitas vítimas de psicografake nos últimos anos).
Nesta emboscada, ocorrida em 1957, uma reunião religiosa - chamada de "doutrinária espírita" - comandada pelo "médium" era carregada de um clima de muita pieguice. O filho de Humberto de Campos foi envolvido num processo de dominação psicológica com efeitos perigosamente hipnóticos, chamado de "bombardeio de amor" (do inglês love bombing).
O "bombardeio de amor" usado na ocasião é um dos recursos que, na Internet, faz os críticos do Espiritismo brasileiro definirem o "médium" de Uberaba como um "paiol de bombas semióticas", um trocadilho pejotativo com o blogue Cinegnose, que é um excelente e instigante blogue sobre semiótica e fatos cotidianos, até o momento em que seu autor Wilson Roberto Vieira Ferreira decide passar pano no "médium".
Humberto de Campos Filho, dominado pelo "médium" que antes era alvo de seu processo judicial, passou então a trocar o senso cético e racional por um deslumbramento infantilizado e tolo, acompanhando o "médium" em suas demonstrações de Assistencialismo (tipo o que Luciano Huck faz hoje em dia), inclusive com o produtor de TV na constrangedora tarefa de brincar de fazer sopa, mexendo a colher de uma panela em cozimento.
O que oficialmente se credita oficialmente como "reconciliação", na verdade, foi a vitória da impunidade de um charlatão religioso que, na ocasião, também estava envolvido em fraudes de materialização, com sessões fotográficas grosseiramente produzidas com falsos voluntários com gazes enfiadas na boca e modelos cobertos de mantos brancos com as fotos de pessoas mortas fotocopiadas e coladas sobre as cabeças cobertas dos modelos.
Em certos momentos, locutores em off faziam as vozes atribuídas aos supostos espíritos materializados, e o "bondoso médium" assinava atestados autenticando as fraudes, desmascaradas em 1970, mas com o "médium" saindo de fininho, como um Aécio Neves da paranormalidade.
A omissão dos citados colunistas, do UOL e Brasil 247, reflete também a manobra de se evitar o óbvio: a fruta não cai longe da árvore. Se temos "médiuns" charlatães acusados de crimes sexuais ou apoio de atos fascistas, alguém foi precursor. Alguém serviu de "exemplo" para seus pupilos se lambuzarem de práticas desonestas ou reacionárias.
O "médium" de Uberaba, no entanto, foi citado de maneira omissa no texto do UOL e ignorado no texto do Brasil 247, como se não tivesse a ver com o golpismo do "médium" de Salvador, de quem o colega do Triângulo Mineiro era amigo e parceiro, apesar de uma fase em que eram desafetos, pela acusação de que o baiano havia plagiado o mineiro, que também já era um plagiador, como lembra o blogue Obras Psicografadas, com muitas provas textuais.
Sabemos que o UOL tem interesse no Espiritismo brasileiro porque, dizem rumores, o principal herdeiro do antigo dono, Otávio Frias Filho, o irmão do finado jornalista Luís Frias, estaria esperando uma "psicografia" lhe designando por fez o novo dono do Grupo Folha, que vive uma disputa familiar para obter o controle da empresa.
Mas o 247, que já passou pano no "médium" em outras ocasiões, atualmente tem uma linha editorial laica, depois de acolher uma "espírita de esquerda" entre seus colunistas audiovisuais. Leigo em Espiritismo brasileiro, no entanto, Neggo Tom, mesmo sem querer, arrumou uma árvore distante para poupar a mancenilheira de Uberaba da culpa pelos maus frutos de Abadiânia, no interior de Goiás, e do bairro de Pau da Lima, de Salvador.
Desconhecendo que o Espiritismo brasileiro traiu os conceitos da Codificação, independente de Allan Kardec ter sido um pedagogo admirável ou um racista sombrio, Neggo Tom acabou poupando o verdadeiro culpado pelos desmandos dos "médiuns" charlatães: o "médium da peruca" que, no seu auge, se envolveu num subestimado episódio de colaboração e apoio radical e explícito à ditadura militar, a ponto de render homenagens pomposas da Escola Superior de Guerra (um nome "bélico" para alguém que costuma estar associado à "paz", ainda que a "paz sem voz" da submissão religiosa).
Com isso, Neggo Tom culpou a árvore distante de Lyon, a terra natal de Kardec, pelos maus frutos que não produziu. E diante de um deslumbramento religioso dos "espíritas", que desprezam severamente a "lógica" que dizem exaltar e zelar no discurso, a má árvore não pode gerar maus frutos. Em nome da idolatria religiosa, certas más árvores são boas porque os frutos das mancenilheiras e cicutas da fé medieval possuem gosto doce que desce macio na garganta. Diante das armadilhas do não-raivismo, perversidade associada a palavras suaves vira "coisa boa".
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