Voltando à polêmica do Espiritismo brasileiro e seu "médium" bolsonarista, um caso que não pode cair no esquecimento, o caso do outro "médium", aquele que usava peruca e viveu suas últimas décadas em Uberaba, se promovendo às custas do Assistencialismo mais fajuto, artifício usado para tentar abafar seu charlatanismo, envolve um grande mal-entendido histórico.
Diante da repercussão de um programa da TV Tupi em 1971, quando o referido "médium" defendeu histericamente a ditadura militar, com um anti-esquerdismo furioso que faz o reacionarismo de Silas Malafaia parecer Che Guevara no modo ternura, houve uma interpretação tendenciosa e sem um mínimo de lógica para salvar o farsante que ostenta, de graça, o título de "maior médium do país", e cujo nome evitamos citar para não emporcalhar nossas linhas nem atrair mau agouro para este blogue.
Com as mãos cheias de flanelas para passar pano no conservadorismo do "médium de peruca", setores da opinião pública tentaram minimizar, na época, o apoio radical do ídolo religioso, dizendo que foi "uma estratégia para evitar ser preso".
Isso não tem um pingo de lógica. Afinal, se o "médium" não quisesse ser preso, ele iria para o exílio. Se ele tinha medo de avião, pegava navio ou mesmo ônibus, no caso de países como os vizinhos da América do Sul. Não há uma lógica do "médium" falar para milhares de pessoas pedindo apoio aos militares da ditadura militar, ainda mais em fase mais repressiva, para enganar o povo e evitar que ele fosse preso.
Isso traz uma contradição enorme. Ele não era religioso e tinha fama de "honesto", segundo seus seguidores (embora, observando bem, a carreira do "bom homem" é um gigantesco esgoto de ações desonestas e retrógradas)? Ele não queria ser conhecido como uma pessoa "sincera", como todo sujeito que se diz "cristão"? Como ele iria defender a ditadura militar com tanta convicção se isso era apenas um truque para que ele não fosse levado para a prisão?
E isso é irônico, pois o "bom homem" quase foi para a prisão por conta do uso leviano do nome de Humberto de Campos em obras fake que se diziam "espirituais". Isso porque um juiz suplente, agindo com o mesmo senso seletivo de Sérgio Moro, julgou o processo "improcedente" e deu impunidade ao "médium", apesar de, evidentemente, a "obra espiritual" creditada a Humberto fosse uma farsa, bastando uma leitura atenta para ver o abismo estilístico que separa o escritor maranhense que viveu entre nós e o suposto espírito que nunca passou de uma vergonhosa fraude.
Não bastasse o apoio do "médium" à ditadura militar que, na época, mandava presos políticos "de volta para a pátria espiritual", num programa de TV e num poema fake atribuído ao abolicionista Castro Alves (que nunca iria defender um regime político tão opressor quanto a escravidão, ainda mais com os descendentes de senhores de engenhos em maioria apoiando a ditadura), o "homem bom" ainda recebeu uma homenagem da Escola Superior de Guerra, em 1972.
Devemos nos lembrar desse episódio e martelar até cansar. O pessoal não aguenta ouvir falar do "médium" condecorado pela Escola Superior de Guerra, que fez palestras lá e recebeu homenagens? Pois que aguentem, pois são fatos, e não há fé nem preces que possam fazer derrubar a veracidade dos fatos, e a realidade nem sempre se mostra de forma generosa nem complacente.
Pois bem, perguntamos o que fez um "médium", supostamente símbolo da paz e do amor, para aceitar ser homenageado por uma instituição militar, com "guerra" no nome, e por sinal uma entidade considerada o "cérebro" da ditadura militar, pois foi através da ESG que se planejou a Operação Bandeirante (OBAN, depois DOI-CODI), a pior ferramenta de repressão ditatorial que ceifou muitas vidas, em evidente crime contra os direitos humanos.
Uma matéria do jornal Última Hora noticiou a homenagem, mas o jornalista que a escreveu disse que o "médium" aceitou ser homenageado "por estratégia", supostamente para evitar que ele seja alvo da repressão militar e fosse preso e até torturado, mesmo estando o "médium" com 62 anos em 1972, equivalente, hoje, a 82 anos. A ideia não tem pé nem cabeça, e as esquerdas médias ainda botaram na conta da mídia esquerdista a negação de que o "médium" teria apoiado a ditadura militar.
Antes de mais nada, expliquemos a homenagem. Ninguém homenageia uma pessoa a contragosto e, por outro lado, ninguém é homenageado à força. Se a Escola Superior de Guerra homenageou o "médium" de Uberaba, é porque o "médium" foi um colaborador estratégico da ditadura militar, com uma atuação de fazer inveja a um Cabo Anselmo.
Isso faz sentido, porque os livros do "médium", que em parte eu li quando seguia o Espiritismo brasileiro, são um verdadeiro receituário do mais retrógrado moralismo religioso, fundamentado na Teologia do Sofrimento, uma corrente do Catolicismo medieval que definia o "holocausto" - a ferramenta punitiva do nazi-fascismo - como um "caminho necessário para chegar a um mundo melhor".
Era só sofrer calado as piores adversidades, que surgiam como pragas intermináveis, sem reclamar uma vírgula sequer e nem fazer qualquer tipo de questionamento. Pelo contrário, se agradecia a Deus pela desgraça obtida e acreditava-se no juízo de valor punitivista do Espiritismo à brasileira, nos seus momentos abertamente anti-Kardec, que alegava que o sofredor mais desgraçado estava "pagando pelo que fez em uma vida passada". Pagando com juros exorbitantes, como que numa extorsão moral e religiosa.
Mas tudo isso é creditado como "progressista" por uma elite do atraso que não quer ser conhecida por este nome porque senão chora. Afinal, tudo isso é pregado com discurso suave, sem os berros de um Malafaia ou a teatralidade do Edir Macedo. O não-raivismo mostra suas armadilhas para quem vê a realidade com uma lógica algorítmica que usa o senso de humor como medida para o binarismo ideológico entre direita / raiva e esquerda / alegria.
E aí vemos a pegadinha que Última Hora, um jornal considerado pioneiro na mídia esquerdista, criou para os leitores desavisados, ao passar pano no "médium" inventando que ele só apoiou a ditadura para salvar sua própria pele. Logo, o periódico resolveu apoiar o "médium" porque UH em 1972 continuava fiel à sua linha editorial progressista, certo?
Errado. Em primeiro lugar, a Última Hora já não pertenceu a Samuel Wainer desde 1971, pois ele vendeu para o mesmo grupo de empreiteiros que havia comprado, na época, o Correio da Manhã poucos anos antes. Nessa época também o Correio da Manhã, de direita moderada mas opositora da ditadura militar, deixou de lado essa linha combativa e passou a se comportar de acordo com a cartilha do AI-5.
O que isso significa? Que a Última Hora deixou de ter a sua reconhecida linha editorial de esquerda. Como o jornal carioca tinha uma rede de jornais filiados - ou seja, versões do mesmo periódico em outros Estados - , a sua versão paulista, por exemplo, foi vendida para a Folha de São Paulo, então controlada por Otávio Frias de Oliveira, cujo filho Luís Frias, suspeita-se, está flertando com o Espiritismo brasileiro, como sugerem as pautas tendenciosas da Folha e do UOL para esta religião.
Daí que não foi, exatamente, um periódico de esquerda que passou o pano no "médium de peruca" ao tentar desmentir, com argumentos infundados, que ele tenha apoiado ou colaborado com a ditadura militar. Foi um periódico convertido a um veículo conservador da imprensa corporativa, que plantou essa fantasia de que o "médium" só defendeu a ditadura militar "por estratégia".
Eu, quando segui o Espiritismo brasileiro, eu tive contato com as ideias desse "médium" e elas realmente são reacionárias e ultraconservadoras, cheirando a mofo tóxico do século XII. Li dois livros inteiros dele e, parcialmente, umas dezenas de outros.
Vendo sua trajetória, o "médium" que, além de charlatão, ainda carrega a morte suspeita de um sobrinho pelas costas, nunca defendeu a redemocratização do Brasil. E até seu mentor, o Padre Manuel da Nóbrega, é marcado pelo temperamento autoritário e pelas ideias punitivistas e austeras.
Iludida com a imagem adocicada que o "médium" recebe nas redes sociais, a "boa" sociedade brasileira acha um "absurdo" o "médium" ter apoiado a ditadura. Inventaram que ele virou esquerdista no fim da vida, quando ele era inflexível no seu conservadorismo extremo. São puras fake news: os fatos mostram que o "bondoso médium" apoiou Fernando Henrique Cardoso e ficou encantado com a figura de Aécio Neves, o "sonhado grande líder de Minas Gerais", como um novo Dom Pedro I das Alterosas.
As pessoas deveriam observar as coisas e renunciar às cegueiras do fanatismo religioso. Se atrizes antes adoráveis como Cássia Kis e Regina Duarte passaram a ser detestáveis reacionárias radicais, por que recusar-se a admitir ultraconservadorismo e reacionarismo num "médium" que se demonstrou abertamente ultraconservador e reacionário? Paciência, a realidade não está aqui para agradar as pessoas.
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