CARROS SÃO ARRASTADOS PELAS ENCHENTES E BLOQUEIAM RUA NO BAIRRO DO GRAJAÚ, EM SÃO PAULO.
Muitas pessoas, não só na Internet mas na imprensa ou mesmo nos meios acadêmicos e culturais, vão dormir tranquilas por ouvirem a narrativa dominante de que, nas favelas e nos subúrbios, tudo é Carnaval 365 dias por ano. O povo pobre é feliz, a pobreza é uma identidade social e um modelo de vida, e muita gente adere a essa lorota travestida de análise etnográfica objetiva e imparcial.
Na vida real, o drama das periferias, das favelas com seus acessos difíceis, sua violência, suas carências inúmeras e suas tragédias diversas, não cabem num sucesso de "funk" nem em outros ritmos popularescos. A vida cotidiana nada tem a ver com o canto feliz, a dança animada e a rotina tranquila de uns poucos pobres emancipados que, em parte, conquistam posições dirigentes em ONGs e outras instituições.
Anteontem, São Paulo e Manaus enfrentaram dramas consequentes da falta de atenção do poder público em criar ações preventivas não só para conter os estragos dos temporais nas favelas, como para dar moradias decentes e seguras em todos os aspectos para os moradores pobres.
Em Manaus, numa comunidade do bairro Jorge Teixeira, um deslizamento de terra matou, pelo menos, oito pessoas, conforme dados obtidos até a edição desta postagem. Quatro pessoas relativamente jovens, em média 35 anos, e quatro crianças. Uma tragédia que não cabe na alegria do carimbó, do boi-bumbá e do tecnobrega que tanto "definem" a "periferia feliz" dos "nossos melhores intelectuais".
Em São Paulo, os temporais que castigam a cidade e que já mataram uma idosa, trancada num carro e afogada por um alagamento no bairro de Moema, também causaram transtornos diversos. Em um deles, o bairro do Grajaú, homônimo ao famosíssimo bairro carioca, casas foram invadidas pelas águas das enchentes, fazendo com que vários moradores perdessem bens. Uma moradora entrevistada por um repórter do SP TV (TV Globo SP) chorou ao declarar que perdeu tudo.
Foi horrível. O alagamento de uma rua no Grajaú fez arrastar vários automóveis e, para piorar, alguns deles acabaram bloqueando a rua, o que fez a água se acumular e aumentar, indo para as casas. Muito prejuízo tiveram os moradores com tantas coisas perdidas, sem ter dinheiro para arcar com essas perdas.
Isso tudo mostra o quanto o povo pobre não tem a ver com a narrativa feliz travestida de "objetividade científica" que nossa intelectualidade "bacana" traz sob aplausos e ovações de setores influentes da opinião pública. E, pasmem, são pessoas que estufam o peito dizendo que são "progressistas", gente "com profunda consciência social", "entendedora do povo pobre", dotada de uma "análise cirúrgica sobre a realidade das periferias".
Sim, são pessoas prestigiadas, badaladas, "santificadas" na Internet, com páginas favoráveis, com tantos comentários positivos e apenas críticas do "lado bolsonarista". Esses intelectuais que pensam que entendem de povo pobre não sabem tantas dificuldades que existem.
Na Mooca, conforme sabemos, existe um galpão chamado Tijolinho da Mooca, com dez mil moradores ocupando um galpão antigo que possui fiação exposta, esgoto a céu aberto e um amontoado de residências improvisadas num local sem segurança contra incêndios.
Não existe moradias dignas para muitos pobres. E ainda se fala, conforme um evento que relembra os cinco anos de falecimento de Marielle Franco, completados ontem, que "as favelas estão reconstruindo o Brasil". Favelas? Elas viraram instituição? O pessoal anda precisando de ver menos novela da Globo e ler mais Carolina Maria de Jesus.
Temos um mercado de trabalho que parece preferir, salvo exceções, um profissional qualquer nota que seja jovem, humorista e torcedor de futebol do que um profissional talentoso e muito competente e ainda com energia e saúde depois dos 40 e 50 anos de idade. Temos um concurso público que parece se voltar àqueles que não se identificam com a função e vivem a reclamar pelas costas do trabalho que conquistaram.
Enfim, temos uma realidade viciada e doentia do Brasil que se julga, agora, "culturalmente saudável" só porque Margareth Menezes liberou as verbas do Ministério da Cultura que ela está gerindo atualmente. Verbas que vão para a axé-music e privilegiam ídolos como Léo Santana, em detrimento de muitos músicos geniais no Nordeste, Norte e outras partes menos conhecidas do país, que não integram esse bacanal comercial dos nomes "popularmente reconhecidos".
E temos ainda um poder público que mal consegue contemplar a necessidade de moradias, pois o programa Minha Casa, Minha Vida não é gratuito. Ainda não há uma política habitacional para os sem-tetos, muita gente é obrigada a viver no triste cenário de ruas sujas, com barracas que não servem como moradia digna.
Quando eu passei de ônibus na proximidade da Av. Pacaembu, na Barra Funda, eu vi uma barraca de um sem-teto tão danificada que ela estava remendada com sacos de plásticos. No ano passado eu vi, diante do Terminal da Barra Funda, na Av. Mário de Andrade (lembremos à SP Trans que o autor modernista decretou impeachment ao falecido parlamentar Auro de Moura Andrade - nenhum parentesco - e a avenida do antigo político hoje é toda com o nome do autor de Macunaíma), uma moradora de rua sem barraca que teve que enfrentar uma chuva nesta triste condição.
As periferias são tragédias, são dramas pessoais, dramas familiares, dramas coletivos. Não é o "carnaval permanente" que se observa nas narrativas tranquilas de intelectuais que, no alto de seus apartamentos de luxo, veem, à distância, as favelas que essa elite "pensante", no seu juízo de valor, imaginam serem "cenários de muita felicidade". Fácil passar um estereótipo inspirado em comédias de núcleos pobres de novelas da TV para monografias e documentários cinematográficos.
Este é um Brasil que não cabe no "funk", no tecnobrega, no piseiro, na axé-music, no brega dos anos 1970 e por aí vai. A periferia real é a da tragédia das enchentes de Grajaú, em São Paulo, e nos tiroteios de Grajaú, no Rio de Janeiro, umas destruindo bens, outros destruindo vidas. São as tragédias de chuvas em Manaus, São Sebastião, Recife, Petrópolis. É a escravidão no Rio Grande do Sul, Minas Gerais e outras áreas. É o desemprego crônico, são os sem-tetos forçados a optarem pelos pesadelos das cracolândias.
As periferias, se são cenários de sonhos, estes sonhos são terríveis pesadelos, em dimensões dantescas. Cabe a nossa "generosa" classe média, a "boa" elite do atraso desprovida de raivismo, repensar o país, procurando deixar de ser a sociedade que, "sem preconceitos", é perversamente preconceituosa.
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