ALOJAMENTO ONDE TRABALHADORES ESCRAVIZADOS VIVIAM EM BENTO GONÇALVES E DE ONDE FORAM RESGATADOS PELA POLÍCIA RODOVIÁRIA FEDERAL.
Triste intelectualidade. Artistas, cineastas, jornalistas culturais e antropólogos, pretensas unanimidades, movidos à carteirada de prêmios e do prestígio profissional, tidos como "progressistas" numa abordagem tida como "contra o preconceito", achando que entendem o povo pobre de maneira "realista", "imparcial" e "objetiva", ainda que, às vezes, haja uma certa "provocatividade".
No entanto, a gente vê o discurso de todos deles e o que eles mostram é uma leitura caricatural do povo pobre, espetacularizada e festiva, em que pese o suposto engajamento eventual, por parte do "funk" e similares. Como se as favelas e outros cenários das "periferias" vivessem num clima de festa permanente.
Fora essa leitura "fiel à realidade popular", a realidade que se vê não é a "realidade" que uma elite de profissionais "esclarecidos", com seu não-assumido culturalismo vira-lata, oferece sob o veniz da pretensa objetividade.
A realidade é muito mais cruel numa sociedade "desenhada" pelo "milagre brasileiro" de 1969-1974 e pela Era Geisel de 1974-1979, desenho este do qual a "boa" sociedade se limita apenas a apagar traços mais "agressivos".
Recentemente, num país em que o bolsonarismo, a ser desmontado, vive o escândalo das joias que a ex-primeira-dama, Michelle Bolsonaro, recebeu do governo da Arábia Saudita supostamente para influir na privatização da Petrobras, vemos o outro lado, o sofrimento dos trabalhadores escravizados que produziriam vinho e frango em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul.
Boa parte desses trabalhadores veio da Bahia, intermediados por um empresário para a empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio a Gestão de Saúde, para contrato para o referido trabalho. Em condições degradantes, trabalharam cargas horárias exaustivas em troca de pouco dinheiro, não raro pago com atraso. Eram humilhados e, em certas ocasiões, punidos com chutes, espancamentos e socos, choques elétricos e spray de pimenta.
Um desses trabalhadores, Cláudio Nascimento da Silva, de 33 anos, foi levado para um quarto isolado e lá foi agredido com chutes, pontapés e espancamento porque teve uma séria crise de asma no trabalho. Teve que ir para o hospital por causa dos ferimentos da violência dos capatazes.
Os trabalhadores deram detalhes no depoimento à Polícia Rodoviária Federal, que resgatou o grupo. Era proibido reclamar e todo tipo de violência era usado como represália, de cadeirada a choques elétricos, de socos a spray de pimenta.
Um outro trabalhador já havia fugido antes da operação de resgate, juntamente com outros colegas. Ele afirmou que o grupo não recebeu pagamentos e sofreu ameaças caso os trabalhadores decidissem fugir do local do alojamento. "Falaram que iam dar sumiço em mim", disse o trabalhador.
A situação de pobreza não se limita a isso, pois o drama é múltiplo. É a diarista que não pode cozinhar marmita, é a empregada doméstica que passeia com o cachorro da dona que, negligente, deixa morrer, num acidente, o filho da doméstica. São negros tratados como ladrões só porque observavam por mais de cinco minutos um produto num estabelecimento comercial. Há uma infinidade de problemas e tragédias que os chamados "excluídos sociais" vivem, o que é muito triste e revoltante.
Teve até um caso de uma deputada do PL do Maranhão, Abigail Cunha, conhecida por suas posturas racistas contra os negros, e que, apenas para lacrar na Internet e se passar por "boazinha", postou uma foto posando ao lado de empregadas desta etnia, só para dizer que "gosta de negros", em uma postagem que não escondia seu caráter de hipocrisia e esnobismo. A foto foi retirada das redes sociais, não sem antes ela ser reproduzida e divulgada na imprensa com os rostos das empregadas ofuscados por pixels.
Apesar disso, somos convidados a aplaudir uma elite de intelectuais festivos, de visões supostamente objetivas e realistas sobre o povo pobre, mas no fundo mascarando marketing com o aparato de monografias e artigos científicos ou de grandes reportagens e documentários. Vivendo uma vida confortável comparável à de celebridades emergentes, essa elite "esclarecida" e "iluminada" ainda tem o descaramento de se achar "tão ou mais povo" do que o povo pobre.
Nesse grupo há os artistas "provocativos" que exaltam a bregalização, essa pretensa "cultura popular" marcada pela exploração do ridículo e do patético, como se o povo pobre não fosse mais do que os caricatos miseráveis que, pateticamente, aparecem em programas humorísticos ou em núcleos pobres de novelas de televisão.
É aquele cantor ou escritor, aquele jornalista ou historiador, triste porque o espetáculo brega que o faz se divertir "não é levado a sério" culturalmente. Acham que esse universo é "divertido", supostamente por generosidade com o povo pobre, mas no fundo cometendo a crueldade elitista de se divertir enquanto o povo pobre faz papel do bobo-da-corte pós-moderno, para causar risadas na elite do atraso que não quer ser conhecida por este nome.
É vergonhoso. No brega mais antigo ou no "funk", no "sertanejo", na axé-musicm no arrocha, no "pagode romântico", no "pagodão" baiano ou suingueira, no forró-brega (incluindo derivados com tecnobrega, piseiro ou pisadinha, sarradinha etc), o que se vê é a depreciação do povo pobre, rebaixado a uma caricatura feita para garantir não só o sono tranquilo dos ricos, mas para o divertimento esnobe e populista de uns artistas e intelectuais partidários da breguice cultural.
O pobre só pode ganhar bastante dinheiro se fazer o papel de bobo-da-corte para divertir a nossa "admirável" intelligentzia. Mas quando é um trabalho mais digno, a remuneração, quando sai, é baixa, e não raro sai atrasada. Em muitos casos, o trabalhador fica sem ganhar salário, vivendo o drama de ter que pedir dinheiro emprestado, com contas aumentando, preços dos alimentos caros e nenhuma grana chegando em suas mãos.
Paciência. São os tataranetos da Casa Grande, que veem no espetáculo da bregalização festiva uma "Senzala pós-moderna com reputação de Quilombo". O pobre, para esses artistas e intelectuais pró-brega, a intelectualidade "bacana" descrita no meu livro Esses Intelectuais Pertinentes..., é apenas o "idiota feliz" que traz "diversão" e só é "admirável" por esta condição.
Sim, os artistas e intelectuais que tanto falam "em favor do povo pobre" nas rodas de cerveja ou nas suas obras artísticas ou acadêmicas, cinematográficas ou jornalísticas, são os mesmos que, por outro lado, não suportam ver miseráveis invadindo fazendas improdutivas por causa da fome e da vontade de produzir seus próprios alimentos.
Os artistas e intelectuais que adoram ver um mendigo banguela balbuciar asneiras risonho num programa de auditório, a ponto de definir esse humilhante espetáculo como "demonstração de modernidade pop" (?!), são os mesmos que, dentro de seus carros luxuosos, se atrevem a fechar as janelas de vidro fumê para não encarar o assédio desesperado de pedintes famintos implorando por uns centavos.
Os tataravôs escravizavam negros e os puniam marcando seus corpos a ferro ou linchando com chicote e agravando feridas e cicatrizes com água fervendo, sal ou pimenta. Os tataranetos de hoje em dia apenas gracejam, felizes e falsamente generosos, diante de pobres que são forçados pelas circunstâncias a adotar um comportamento patético, se divertindo às custas das debilidades involuntárias dos pobres.
Essa "boa" elite, que pretensamente bate ponto em qualquer causa progressista, ainda tem o cinismo de se dizer "sem preconceitos". É uma sociedade "sem preconceitos", mas muito preconceituosa, que no último Carnaval de Salvador ficou feliz quando o papel desempenhado dos negros pobres da capital baiana é de entreter foliões ricos com "pagodão" e axé-music, ou, num contexto mais modesto, vender cervejas e sanduíches.
Mas fora esse espetáculo, os negros pobres de Salvador não conseguem ter um emprego, pois o mercado de trabalho da capital baiana é, salvo raras exceções, profundamente mão-de-vaca, fechado e exigente. Precisamos rever esse país, que "combate o preconceito" aceitando a bregalização cultural, para mascarar o verdadeiro preconceito que traumatiza, na realidade nua e crua, as classes populares sob os mais diversos aspectos. Triste.
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