JUNTO COM KATE PIERSON DOS B-52'S, A BANDA R.E.M. HAVIA CRITICADO A POSITIVIDADE TÓXICA EM "SHINY HAPPY PEOPLE". ISSO EM 1991.
É assustador o cenário de positividade tóxica que assola o Brasil. Num momento em que, na teoria, nosso país passa por uma reconstrução, a sociedade que domina as narrativas nas redes sociais e nos setores influentes da opinião pública não quer saber de debates, nem senso crítico, nem questionamentos.
Tudo apenas é diversão, festa, comemoração, consumismo. Se fosse todo mundo que tivesse esse benefício, tudo bem, mas os benefícios acabam se concentrando naquela que chamo de "elite do bom atraso", a esquerda festiva da classe média abastada e suas pessoas infantilizadas, esnobes e arrogantes, que se acham "a humanidade", e acham que vão conquistar o mundo cantando "Evidências" ao som do teclado do músico da banda de Bruno Mars, enquanto Michael Sullivan joga pá de cal no túmulo de Tom Jobim.
Nem o "milagre brasileiro" do Brasil do AI-5 de 55 anos atrás conseguiu promover tanto conformismo social, pois somente o poder ditatorial proibia o senso crítico, que no entanto continuava sendo um ato social bastante respeitado fora dos círculos repressores.
Hoje, porém, é diferente. Ter senso crítico traz sério risco de ser cancelado, numa época em que o Brasil retira o Instagram do imaginário virtual e o insere na vida real, com pessoas preferindo gargalhar histericamente com suas piadas sem graça e passar a madrugada se entupindo de cerveja, gritando e perturbando o sono de quem quer acordar cedo para trabalhar.
A positividade tóxica impõe, com seu "AI-SIMco", que aceitemos tudo, que estejamos de acordo com tudo, exceto com o que estiver a marca do bolsonarismo. Criou-se uma ilusão de que o mal é somente o bolsolavajatismo e criou-se uma patente equivocada do viralatismo cultural para uns poucos, como Sérgio Moro, Jair Bolsonaro, Carla Zambelli e Kim Kataguiri.
Os artífices do golpismo de 2016 deixaram seu legado para uns poucos radicais e, pulando do navio em naufrágio, posam de "democratas" ao lado de Lula, este com um comportamento estranho, apoiado pelas esquerdas médias que não suportam mais o pensamento crítico, como aquelas pessoas chatas que querem que acreditemos que tudo esteja bem, mesmo com tanta sujeira ao nosso redor.
E aí vemos o quanto é ilusório atribuir ao bolsonarismo - ou o lavajatismo, ou o trumpismo, por associação - todos os males da Terra. Não que o bolsonarismo não fosse o mal, pois realmente é e foi uma força nociva e patética. Seu imaginário é patético e retrógrado, e como foi ridículo verificar que bastava ser delegado de polícia, militar e pastor evangélico para ser eleito para um cargo parlamentar, em 2018.
Mas temos entulhos culturais que vem desde 1964 e, infelizmente, muita coisa considerada antiga insiste em sofrer a síndrome do perecimento invertido, quando uma coisa ruim passa a ser vista como "genial, brilhante e saudosa" quando se torna mais antiga. A gourmetização da música brega e sua adoção bastarda pelo mainstream da MPB é um exemplo emblemático disso.
Vemos que o clima de positividade tóxica remete mais à supremacia de uma elite "invisível", mas cheia de dinheiro, preocupada com hedonismo, com supérfluos, com muito consumismo e emoções baratas. Uma "democracia" somente para os 30% de bem-nascidos, que podem não ter a fortuna digna da lista dos mais ricos da Forbes, mas é dotada de um conforto que prioriza o supérfluo e um apetite egoísta que resiste em ajudar o próximo.
É claro que há exceções entre aqueles que estão bem de vida. Nem todos compartilham dessa supremacia da classe média abastada, embora convivam com seus patrícios. Mas quem detém as rédeas da sociedade no Brasil são os 30% que vão dos "pobres de novela" aos "descolados" da alta burguesia, a "classe média de Oslo" ou "classe média de Zurique" (já que o economista estadunidense Robin Brooks, exaltando Lula, sonha em ver o Brasil a "Suíça sul-americana").
Pior é que hoje se espalha uma visão equivocada de que a sensibilidade tanto emotiva quanto racional são "responsáveis" pelo bolsonarismo. Um bode expiatório tanto errôneo quanto ilógico, no qual figuras como Juscelino Kubitschek, Tom Jobim, Renato Russo ou o simples "solteiro involuntário" que anonimamente tem mais de 30 anos e mora com sua mãe idosa e doente, são demonizadas pelo imaginário "Instagram / Tik Tok" da moçada cheia de complexo de superioridade.
Isso me faz lembrar o tempo de 1991, quando os EUA viviam a ressaca do hedonismo cego dos anos 1980 de lá, cheio de pop com muita coreografia e muitos sintetizadores falando só de dança e amores baratos, cenário que se seguiu depois à desilusão que abriu caminho para o grunge naquela época.
Mas mesmo bandas como o R.E.M. - que se retirou de cena em 2011, na contramão das subcelebridades, porque seus integrantes queriam priorizar a vida particular, a família e os amigos - também entravam no clima melancólico, mesmo em faixas aparentemente vibrantes como "Shiny Happy People", canção de 1991 com a participação de Kate Pierson dos B-52's (banda presente no Brasil, no primeiro Rock In Rio).
A canção fez sucesso no Brasil, mas poucos percebem que versos como "Pessoas brilhantes e felizes se dão as mãos / Pessoas brilhantes e felizes rindo" e "Não há tempo para chorar" eram irônicos, e a letra era uma crítica à positividade tóxica do hedonismo festivo.
Mas isso é lá, nos EUA. Aqui no Brasil, o que temos é Ivete Sangalo cantando "Não me conte seus problemas / Eu só quero paz, só quero amor", um hino para essa positividade tóxica que se encaixa nos dias atuais, pois a música já faz um tempo.
Justamente quando o Brasil se reconstrói e o que mais precisamos é contestar, questionar e até repudiar, investindo não só na "democracia do sim", mas também na "democracia do não", o que vemos, infelizmnte, é o que eu chamo, num trocadilho contestatório, de "AI-SIMco", uma repaginação do "milagre brasileiro" sem os aspectos incômodos (generais-presidentes, DOI-CODI, torturadores etc).
Por baixo dos panos, o ódio bolsonarista continua, as convulsões sociais continuam. Não é por causa do senso crítico que o ódio explode. Pelo contrário, é sufocando o senso crítico que sempre traz problemas, lembrando que o pior resmungão não é aquele que reclama de tudo - pois muita gente reclama de muita coisa com razão, pois se muita coisa está errada, ninguém vai selecionar problema para combater - , mas aquele que obriga até quem está na pior a fazer de conta que tudo está bem.
Fora das bolhas sociais, a realidade é dura. E se as pessoas boicotam os textos que apontam que algo está errado no Brasil de hoje, a realidade dos fatos vai mostrar o que os textos não mostram. E aí vemos que a aliança do verbo "lacrar", seja como sinônimo de sucesso nas redes sociais ou de censura nas mentes contestatórias de uns poucos, causará problemas num país condenado a se reconstruir sem remover o lixo mais antigo.
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