Dono da Esfera Brasil, grupo empresarial que inclui várias emissoras de rádio, entre elas a "Jovem Pan com guitarras" 89 FM, João Camargo, publicou um artigo na Folha de São Paulo criticando a taxação dos super-ricos proposta pelo governo Lula. Camargo julga ser "ineficaz" a cobrança de impostos sobre grandes fortunas, alegando que a iniciativa fracassou e foi revogada em países como Alemanha, França, Itália, Irlanda, Holanda, Dinamarca e Áustria.
Segundo Camargo, a cobrança faz afugentar investimentos e não produz a arrecadação de receitas desejada. O empresário disse que "ser rico não é um pecado, mas sim um exemplo de realização que contribui para o desenvolvimento nacional". Em outro trecho do texto, intitulado "Ser rico não é pecado", publicado na Folha de São Paulo de ontem, Camargo usou a meritocracia para justificar sua tese:
"O brasileiro que construiu seu patrimônio deve ser admirado como o protagonista de uma jornada de sucesso. Ele não apenas representa um exemplo de realização, como contribui, muito concretamente, para o desenvolvimento nacional. É ele quem investe, empreende, assume riscos, inova, cria riquezas, gera emprego e paga enormes somas de tributos. Ele é peça fundamental da máquina que produz crescimento econômico".
De fato, muitos famosos (Camargo cita o caso do ator Gerard Depardieu), quando ficam muito ricos, fogem de seus países de origem buscando "asilo econômico" em outros países, quando suas nações de origem ou domicílio passam a cobrar pesado altas taxas de impostos. E, de fato, a cobrança de impostos sobre grandes fortunas do governo Lula prevê uma arrecadação baixa, de cerca de R$ 11,3 bilhões por ano. Mas essa baixa arrecadação se deve mais a critérios brandos do que ao objetivo a ser atingido.
Por outro lado, vemos que não faz sentido Camargo dizer que manter grandes fortunas é crucial para o desenvolvimento econômico e que cobrar dos super-ricos "trará dificuldades para o povo brasileiro". Camargo puxa a brasa para seu caviar, e vemos o quanto ele usa desculpas "racionais" para defender os privilégios dele e da classe a que pertence. Neste sentido, a atuação dele lembra o engajamento da velha burguesia dos tempos do IPES-IBAD.
Camargo, um dos líderes dos farialimeiros (ou farialimers, um paródico termo em inglês), a aristocracia empresarial que têm seus escritórios na Avenida Brigadeiro Faria Lima, aqui em São Paulo (em que pese o fato do brigadeiro que deu nome à avenida ter sido um político paulista nascido e falecido no Rio de Janeiro), atua como um dublê de ativista sociopolitico, à maneira de Luciano Huck que, para os desavisados, começou sua carreira como estagiário da 89 FM.
Sim, a 89 FM, aquela rádio canastrona que é blindada pela imprensa paulista e que ganhou muito dinheiro nos anos 1980 com o apoio político a Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, com uma programação roqueira que, no conjunto da obra, é sofrível, só se salvando alguns programas noturnos.
Como menciona meu livro Radialismo Rock: Por Que Não Deu Certo?, que ganhará nova edição esta semana com um capítulo inédito, a lógica das "rádios rock" do fim dos anos 1980 para cá é colocar a programação diária com perfil de rádio pop convencional para agradar os anunciantes, enquanto a "rádio rock mesmo" só acontece em programas específicos transmitidos no horário noturno. Ou seja, esse papo de "rádio rock 24 horas" é cascata.
Infelizmente, o público roqueiro brasileiro se deixou sentar no colo da Faria Lima, e é vergonhoso ver que a "maior rádio de rock do Brasil" é controlada por um empresário magnata das antigas, e aí vemos o quanto o fracasso do radialismo rock se deu na medida em que o segmento ficou "empresarial demais", afugentando o público roqueiro que hoje migrou para as audições avulsas no YouTube ou MP3.
Afinal, pelo menos no que se notou em várias tendências - como o rock psicodélico dos anos 1960, o punk rock e o rock alternativo dos anos 1980 - , a rebeldia roqueira destoava dos interesses gananciosos do empresariado. Por mais que roqueiro também fica rico e sua música se torna mercadoria, os mais talentosos procuram manter seus princípios, buscando a maior fidelidade possível com os fãs.
Fico pensando que moral tem uma rádio dessas para comandar a divulgação de uma cena roqueira, recebendo material de bandas emergentes cujos músicos nem de longe vivem a vida nababesca da família que controla essa emissora. Por sua condita, já chamo a 89 FM de A Rádio Rockefeller.
Indo para outro terreno da música, devemos lembrar que, no brega-popularesco que se acha "tão pobrezinho", tem muita gente rica de marré de si. MCs de trap e "funk" possuem bens que custam uma fortuna. Tem axézeiros, "sertanejos" e cantores de "pagode romântico" mais ricos que muito suposto burguês da Bossa Nova. Michael Sullivan, o "mais novo dono da MPB" depois de Ivete Sangalo e Zezé di Camargo, faz uma música tão comercial quanto as atividades do Banco Safra, BTG Pactual e da própria Faria Lima.
No fundo, são dois lados de uma mesma moeda. De um lado, a cultura rock fajuta da 89 FM (e sua capataz carioca, a Rádio Cidade), que acabou transformando o público de rock num gado ao mesmo tempo submisso ao sistema e reacionário, aceitando qualquer coisa comercial lançada em nome do gênero e agredindo quem discorda dos valores mesquinhos que esse público acredita.
Já enfrentei essa patota reaça da 89 e Cidade, que com sua mentalidade, já antecipou em duas ou três décadas a boçalidade e a bestialidade bolsomínion. Gente que confunde rebeldia com irritabilidade e que se portava como um bando de gente truculenta nos fóruns de Internet.
De outro lado, porém, temos uma burguesia que defende o brega-popularesco e que também é uma elite da Faria Lima à sua maneira, no "modo Largo da Batata" do termo. Mesmo assim, é o pessoal que pilota SUVs usando sandálias de dedo e que passeia pelas ruas de Recife fazendo de conta que estão em Roma. Esse pessoal jura que é "socialista" e "pobrezinho", mas acha "linda" a miséria dos favelados e acha que a imbecilização cultural popularesca é o primor da cultura popular.
Trocando em miúdos, esses dois lados parecem não se darem bem, mas têm os mesmos propósitos. As esquerdas festivas que adoram passar a madrugada inteira tomando cerveja e falando de futebol também sonhariam em ser super-ricas. Elas só querem, apenas, criar uma nova estética, eliminar a caretice sem eliminar o "direito" de ganhar demais para gastar a grana com supérfluos.
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