NO PASSADO, AS ESQUERDAS SE INDIGNAVAM E EXERCIAM SENSO CRÍTICO. HOJE ELAS SORRIEM E PASSAM PANO EM MUITOS PROBLEMAS.
Mais do que viver a aparente polarização entre esquerda e direita, temos uma polarização ainda mais perigosa.
Nessa polarização, a esquerda simboliza a "alegria" e a direita, a "raiva".
Esse maniqueísmo simplório e prosaico, que permite às esquerdas acolher os "brinquedos culturais" da direita moderada - ou seja, elementos conservadores associados a uma suposta ideia de alegrar o povo pobre - , domina o imaginário dos brasileiros hoje em dia.
É um maniqueísmo preocupante, e que discrimina todo aquele que expressa um pensamento crítico e combativo.
Afinal, quem tem senso crítico e questiona o estabelecido é erroneamente tido como "reacionário" e jogado no lodo da direita raivosa e mal-humorada.
Exercer um pensamento questionador acaba sendo associado às ideias de "ranzinza", "antissocial", de quem está "de mal com a vida" e adota uma postura "arredia".
Por outro lado, aceitar tudo de bandeja, passar pano nos problemas - com exceção daqueles que contrariam abertamente paradigmas manjados do imaginário progressista - e sorrir para o estabelecido dão a impressão de que o esquerdista "genuíno" é "alegre, sociável e esperançoso".
No contexto da vida amorosa, isso sugere uma postura perigosa.
Discrimina o adulto solteirão que mora com os pais e tem dificuldades de arrumar um bom emprego e uma boa namorada. Ele é visto erroneamente como "terrorista" e é enquadrado no estereótipo caricato e pejorativo do "InCel", o "celibatário involuntário".
Esquecem as esquerdas que boa parte dos feminicídios não é cometida por "InCels", mas por "pegadores" com vantagens nas conquistas amorosas e correspondem à grande maioria dos "homens divertidos" que contam piadas nas rodas de cerveja nas boates e bares noturnos.
As esquerdas, ao criar esse maniqueísmo que coloca o "sorriso" como um patrimônio seu e a "raiva" como um patrimônio da direita, cria sérios problemas.
E isso vai no mesmo caminho da sociedade "isenta" e "nem-nem" (se julga "nem de direita nem de esquerda"), que investe na ilusão de que a imparcialidade e o pensamento neutro supostamente compreendem melhor a realidade.
Afinal, o pensamento humano se torna flanelinha: passa a passar pano em tudo, por achar, de maneira equívoca, que senso crítico é sinônimo de opinião.
Isso faz compreender por que os meios acadêmicos demonizam a expressão do senso crítico nas teses de pós-graduação, enquanto acolhem verdadeiras bobagens passadoras de pano que ganham seus 15 minutos de fama quando lançadas, até serem condenadas ao esquecimento nas estantes.
Ou então é o que se compreende quando as próprias esquerdas não estão dispostas a ir para as ruas de verdade, protestando com raiva contra Jair Bolsonaro e companhia, preferindo o recreio da memecracia e das frases de efeito de revolta fingida.
As próprias passeatas populares já são, salvo honrosas exceções, meros espetáculos festivos. Não há indignação de verdade e as pessoas mais estão preocupadas em interagir com o discurso bolsonarista usando e abusando de sorridentes ironias.
As pessoas, neste contexto, preferem fazer papel de "jacarés", "avestruzes" e "leites condensados", ou tomar para si ícones como a camiseta da CBF, que é o símbolo de futebol, que não deveria ser apropriado pelo discurso esquerdista, porque isso nada tem a ver.
E tem muita religiosidade, muita festividade, até parece que ninguém protesta de verdade.
E, o que é pior, as esquerdas se iludem achando que são donas do futuro político, e acreditam que simples sorrisos vão derrubar a raiva desequilibrada de Bolsonaro.
Essa maniqueísmo se deu porque, hoje, as esquerdas são tomadas por aquilo que o imaginário marxista chama de "pequena burguesia".
Somos dominados pelo pensamento pequeno-burguês de que nossos esquerdistas, em que pesem acertar em 80% de suas análises diversas, determinam como suposto meio viável de propagar as ideias progressistas.
Em certos momentos, eles acabam errando e sucumbindo à areia movediça das fantasias, da fé cega e do conformismo com o imaginário da mídia hegemônica.
Acabam acolhendo para si os "brinquedos culturais" da direita moderada, que incluem "médiuns espíritas" ultraconservadores, funqueiros, mulheres-objetos, ídolos cafonas antigos e esportistas fanfarrões.
Eles podem representar o imaginário conservador, o mesmo que faz com que as nossas esquerdas falem a língua da Jovem Pan, seja usando o jargão "balada" para definir tudo de vida noturna, seja para falar o portinglês ultracolonizado, como boy, bike, pet, dog, crazy, game e tantos outros termos gringos.
No entanto, se o discurso não é raivoso, promete a paz mundial e a alegria do povo pobre e não tem a sombra do Luciano Huck, tudo vira "de esquerda".
Sim, é isso mesmo. O imaginário culturalista conservador dos "brinquedos culturais" nem chega a ser visto como "ícones isentos ou de direita" a serem acolhidos para "furar a bolha da polarização". Apesar do direitismo claro, eles chegam a ser vistos como "parte integrante do imaginário de esquerda".
São essas atitudes complacentes que fazem com que nossas forças progressistas percam aliados em potencial, que, realmente indignados, migram para a direita e viram reacionários por questão de sobrevivência.
Dá para perceber tantos músicos de personalidade rebelde que não querem se misturar aos esquerdistas abobalhados.
E as classes trabalhadoras, abandonadas pelas esquerdas de hoje que supervalorizam o identitarismo? É por isso que o proletariado resolveu seguir as seitas neopentecostais ao ver que as esquerdas só querem festa e hedonismo, que não enche a barriga de pessoa alguma.
E o comportamento estranho das esquerdas, que exaltam as favelas, que os intelectuais mais sérios e conceituados definem como um problema habitacional e não como uma "instituição" ou "nação"?
E o emotivismo exagerado das esquerdas, e sua extrema religiosidade, num contexto em que o marxismo original defendia o ateísmo e dizia que a religião era "o ópio do povo"?
E é isso que faz com que o desenvolvimento do Brasil fique comprometido e travado, refém de seu próprio complexo de vira-lata.
Amaldiçoando o senso crítico, confundido com "opinião pessoal", o Brasil passa pano nos seus próprios problemas, preferindo "patrimonializar" o que existe de errado em muitos fenômenos da vida humana.
Isso traz efeitos muito mais graves, porque faz as forças progressistas serem conservadoras, não na forma rancorosa dos bolsonaristas, é verdade, mas numa forma que igualmente prejudica noso país.
E as esquerdas, achando que um factoide que alegrasse o povo brasileiro - como o ouro, conquistado ao som de um "funk", da atleta Rebecca Andrade - pudesse, por si só, derrubar Bolsonaro, podem provocar o efeito contrário.
As esquerdas têm que tomar cuidado com essa fantasia de que o sorriso derruba sempre o ódio, porque isso pode fazê-las serem vistas como idiotas e dar munição para a direita reacionária em volta de Jair Bolsonaro, que não tem medo de esquerdista sorridente.
É esse maniqueísmo barato de uma esquerda sorridente, acrítica e piegas, diante da direita raivosa, indignada, rebelde e agressiva, que as forças progressistas podem botar tudo a perder, mesmo acreditando que estão ganhando o jogo.
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