De que adianta o Brasil vencer no futebol e manter um clima de festa no cenário pós-bolsonarista, com Jair Bolsonaro chorando supostamente por não aguentar uma derrota (na verdade, ele chora por causa de uma possível doença bacteriana numa das pernas)? De que adianta a "classe média de Oslo", que se julga dona do senso comum do povo brasileiro, acreditar que nosso país vai ingressar, no próximo ano, no paraíso e no Primeiro Mundo?
A situação está braba. Observando o caso da comunidade Tijolinho da Mooca, a situação é de arrepiar. Na comunidade com vários brssileiros, haitianos e outros imigrantes hispano-americanos pobres, sem a mínima condição de obter emprego e vivendo em um galpão abandonado que virou área de risco, com esgoto descoberto e fiações elétricas irregulares, que podem, num curto circuito, provocar um trágico incêndio. E favelas de vez em quando são destruídas pelas chamas na capital paulista.
Há quatro anos, um edifício no Paissandu foi derrubado por um incêndio que matou sete pessoas e deixou quem sobreviveu desabrigado. Temos a situação da Cracolândia que ainda não se revolveu nos entornos de Campos Elíseos, Santa Cecília, Largo do Arouche e arredores, no Centro paulistano. áreas que continuam perigosas, principalmente à noite.
No Rio de Janeiro, a tragédia sem fim envolve o bairro do Jacaré, mais precisamente a favela do Jacarezinho, perto do Méier e do Engenho Novo, áreas que conheço muito bem. Desta vez foi um tiroteio no local que ocorreu num domingo de prova do ENEM, o que impediu que muitos candidatos residentes no local saíssem para fazer o exame.
Soma-se a isso um ano em que os feminicídios bateram recorde em todo o país, com quatro crimes por dia, vários ocorridos a céu aberto, de dia, como em Curitiba, que os incautos imaginavam ser uma capital de padrões escandinavos de vida mas se revelou uma cidade reacionária, ultraconservadora e medieval. E os feminicídios acabam sendo tão socialmente estimulados por uma sociedade tomada pelo machismo estrutural que pensa que mulher é capim, achando que, morrendo uma, é só trocar por outra, qualquer uma que estiver disponível.
E temos também um cenário cultural de arrancar os cabelos. Mais um nome da moderna música brasileira morreu, o cantor Leno, da versão de "Pobre Menina", cantada com sua então parceira Lilian Knapp, Era uma versão de "Hang On Sloopy", dos MacCoys, o que mostra a disposição de Leno de dar algo mais do que a Jovem Guarda oferecia de rock ou coisa parecida.
Leno, a exemplo do já falecido Erasmo Carlos, deu tudo de si para trazer inteligência e criatividade na música jovem brasileira. Para piorar, a morte de Leno anda sendo desprezada pela mídia, e nem a de Erasmo Carlos comoveu o país e recebeu as homenagens à altura. Cada vez mais perdemos grandes nomes de nossa cultura, que nos deixam sem receber as devidas homenagens.
Compare essas perdas nos últimos tempos com o que permanece hoje em evidência. Um pretenso vintage vagabundo da canastrice mofada e datada de nomes como Michael Sullivan, Bell Marques e É O Tchan, ou o "funk" promovendo o ufanismo do futebol brasileiro, exercendo sua intoxicação emocional nos brasileiros desta vez em mais uma Copa do Mundo que enche os cofres dos dirigentes esportivos, às custas desta histeria tóxica dos brasileiros que viram zumbis diante de uma tela de TV exibindo um gramado verde e dois grupos de homens disputando a posse de uma bola.
Mais uma vez a Casa Grande se disfarça de Senzala e finge ser Quilombo. A "classe média de Oslo" tenta parecer "invisível" como classe, enquanto dita seus valores, crenças, hábitos, opiniões ao povo brasileiro em geral como se eles fossem "universais" e "acima dos tempos e das tribos". E suas narrativas só admitem um povo pobre caricatural, dentro de uma "cultura" brega-popularesca que, contraditoriamente, define eventos como a "Farofa da G-Kay" como "expressão do povo da periferia".
O Brasil vive a "alegria" tóxica e forçada dos tempos pós-bolsonaristas de hoje, com Lula se vendendo para a Faria Lima enquanto pessoas ainda acreditam no "Lulão esquerdista" das pautas trabalhistas (substituídas pelo identitarismo festivo) - vide, por exemplo, coluna do UOL em que um professor da USP ainda acredita, a meu ver de forma ingênua, na preservação das pautas trabalhistas do governo Lula - , e um país fragilizado que teima em viver em clima de festa intensa e permanente.
Aliás, o professor citado na coluna do UOL acha que o que Lula faz é "esquerda moderna", quando sabemos que isso não é verdade. O acadêmico deve estar tomado dos mesmos preconceitos da fase reacionária da antiga revista Veja, que, entre um antipetismo e outro, defendia que a "boa esquerda" deve ser subserviente ao capital e às diretrizes do neoliberalismo.
Mas há um Brasil oculto, marginalizado por essa "alegria" tóxica e que só é lembrado por ações meramente paliativas por instituições e organizações não-governamentais e outros grupos similares. Um país que não nada na piscina da "Farofa", não senta nas arquibancadas da Copa, não dança o "funk" nem faz festa na laje. Um Brasil oculto, marginalizado, forçado a desaparecer, porque desde 2002 nossos pensadores não quiseram mais retomar os debates estruturais dos antigos ISEB e CPC da UNE.
Em vez disso, tivemos uma intelectualidade festiva, uma espécie de IPES-IBAD pós-tropicalista de intelectuais pró-brega - ver Esses Intelectuais Pertinentes... - , com muito vitimismo de gente como Paulo César de Araújo e eventuais arrogâncias como do mineiro Eugênio Raggi. Uma elite "pensante" que defendia a degradação da cultura popular brasileira sob a desculpa de "combater o preconceito", mas tão somente visando criar mercados estratégicos para os fenômenos popularescos para um público com mais dinheiro no bolso.
Essa retórica "contra o preconceito" é que resultou nas "farofas" de subcelebridades de hoje, no vazio festeiro e etílico dos "sertanejos universitários", na "animação" pré-fabricada das festas da laje sob o som do "pagode romântico" fantasiado de "sambão", do populismo coitadista do "funk" etc. Tudo isso fazendo o povo pobre como caricatura de si mesmo, dentro de uma perspectiva não muito diferente do antigo escravismo da Casa Grande, ancestral dessa nossa "admirável classe média de Oslo".
Até canais de resgates de animais, como o estadunidense Hope For Paws, tratam os bichinhos de maneira personalizada. Diferente da despersonalização do povo pobre, que no festão identitarista da Classe Média que brinca de ser Senzala e pensa ser Quilombo não tem nome nem sobrenome, recebendo de maneira quase brutal os donativos da filantropia religiosa como indigentes recebendo poucos pacotes de benefícios efêmeros.
No identitarismo, já surgem aberrações das classificações "agênero", reduzindo o povo brasileiro a "gentxs" e "pessoxs" tidos como "não-binários". Homens que são "mulheres" sem deixar de ser homens, mulheres odiando serem graciosas ou sensíveis, pessoas animalizadas numa "liberdade hedonista" identitária que parece ter surgido das mentes modernosas do finado Otávio Frias Filho.
E é esse o Brasil que esconde um povo sofrido, que não encara a escravidão formal e institucionalizada de seus antepassados ao longo dos primeiros quatro séculos de Brasil. Mas encara a escravidão estrutural, trazida por uma sociedade midiatizada e mercantilizada, mas que jura que seu "bom" culturalismo de hoje é "fluente como o ar puro da atmiosfera".
E se em outros tempos os escravos fugitivos tinham os corpos marcados dolorosamente por feridas diversas, por grosseiras cicatrizes na pele de tanto ser chicoetada ou por queimaduras que deixaram marcas no corpo e desvalorizavam os escravos para a revenda a outros senhores de engenho - num duplamente cruel suplício de um emprego desumano por natureza - , hoje as marcas são o desprezo social, de miseráveis sem nome.
São esses miseráveis sem nome que, em parte, recebem os tendenciosos e precários donativos de uma filantropia fajuta comandada por "médiuns" que, estes sim, têm nome, sobrenome e vivem do culto à personalidade, abençoando esse "momento maravilhoso" da positividade tóxica que só beneficia quem tem muito dinheiro no bolso e finge apoiar a justiça social, mas apenas nos limites para evitar que os nossos burgueses sejam assaltados de madrugada após a saída de suas festinhas opulentas. Sejam elas "farofas" ou "baladas" (©Jovem Pan).
Comentários
Postar um comentário