OS MOVIMENTOS SINDICAIS VOLTARÃO ÀS RUAS COMO O INCRÍVEL EXÉRCITO BRANCALEONE DAS ESQUERDAS BRASILEIRAS?
"Democracia" é um eufemismo para um cenário político formalmente de esquerda, mas que permite o uso e o abuso de medidas de caráter neoliberal. "Amor" é um eufemismo para o ato de estar em conformidade e em acordo com tudo, bastando aceitar tudo que o establishment em tese não-bolsonarista determinar, sem sucumbir à estética do raivismo, à gramática do hidrofobês e à psicologia do "contra tudo isso que está aí".
O cenário brasileiro atual não ficou melhor. Ficou menos ruim. O "sistema" agora só extermina o lixo mais escancarado e difícil de disfarçar: tudo que for associado à contrariedade, ainda que de forma binária e sob o raciocínio algorítmico do que é "bom" ou "ruim" no Brasil atual.
Dessa forma, se há uma manifestação de senso crítico em que alguém que defende a justiça social grita de revolta e indignação, ele é "algoritmicamente" considerado um "bolsonarista". Já se o sujeito, como um líder religioso ou um "médium espírita", defende, com voz melíflua, que a pessoa aguente "a pior desgraça até acima dos próprios limites humanos", sob o pretexto de um "futuro melhor", a "lógica algorítmica" define essa pregação como "progressista" e até como "esquerdista", pasmem.
Infelizmente, boa parte das esquerdas brasileiras raciocina conforme esse binarismo algorítmico. A direita que "fala macio" e se dirige ao esquerdista de maneira educada e elegante vira "esquerdista", enquanto a esquerda que grita, berra, mesmo alertando de alguma coisa errada, ela é considerada "linha auxiliar do bolsonarismo".
Os "brinquedos culturais" dizem muito sobre isso. Graças a esses "brinquedos", ou seja, valores da direita moderada acolhidos pelas esquerdas infantilizadas, enganadas pela cosmética da positividade de tais fenomenos, muitos enganos aparecem. "Médiuns espíritas" que defenderam a ditadura militar, até pela suposta caridade (nos moldes do mero Assistencialismo paternalista, que mais deslumbra a sociedade do que traz benefícios sociais, que são muito poucos) e pela linguagem mansa, são tidos como "progressistas", até confundidos erroneamente com a Teologia da Libertação.
O raciocínio algorítmico pega as esquerdas de surpresa. E aí vemos disparates tremendos. Pegando carona nos bons samaritanos que não se deixam enganar pela narrativa "socializante" do "funk", que gourmetiza a pobreza humana, reacionários fingem ter "profunda consciência sociocultural" enquanto as forças "progressistas" acham que o papel do povo pobre é ficar "rebolando" como suposta autoafirmação social.
E aí vemos a contaminação pelos dois lados. Se alguém diz que o "funk" aborda o povo pobre de forma caricatural, como um misto de "novela das nove da Globo" com o humor de A Praça é Nossa, esse sujeito é tido erroneamente como "de direita". Mas se o sujeito consente em ver o negro pobre fazendo papel de "macaquinho de realejo" ao som de "funk" e "pagodão" baiano, ainda que isso indique um gritante racismo, é visto como "progressista", porque a mente "algorítmica" identificou sensações de aparente "alegria".
É esse binarismo tosco e torto que corrompeu as esquerdas e Lula mordeu a isca, depois de dar seus últimos sinais de lucidez. Até 2020, Lula era admirável, e foram brilhantes as entrevistas dele na prisão, mostrando um grande líder lúcido, de boas ideias, capaz de enfrentar a pandemia se estivesse governando o Brasil, um grande estadista e uma figura humana ímpar.
De repente, tudo mudou. Em 2021, Lula jogou fora essas qualidades admiráveis. Virou um trapaceiro eleitoral, se vendendo como "candidato único" e fazendo coisas que antes nunca faria, como faltar a um debate presidencial, só porque a emissora que transmitiu foi bolsonarista. E logo Lula, que gosta tanto de futebol, se esquece que 99% dos gols de um time ocorrem porque o jogador entra no campo adversário. Lula venceu as eleições de maneira magra, apertada, suada.
O Brasil virou uma "bolha" social velha, com a classe média filhote do "milagre brasileiro" dominando as rédeas, decidindo pelo senso comum, pelos hábitos, crenças, ídolos, gírias, heróis. Essa classe média está a serviço, institucionalmente, das famílias midiáticas que controlam corações e mentes dos brasileiros: Marinho, Frias, Mesquita, Abravanel, Saad, entre outros. Nós somos convidados a ser o que essas famílias midiáticas desejam que sejamos.
E Lula mordeu a isca. Deixou a lucidez de lado. A grandeza do antigo líder petista, moderado mas de alguma forma esforçado na melhoria do Brasil, foi por água abaixo. No lugar, entrou o Lula da Faria Lima, o molusco transformado em golfinho a nadar fofinho ao lado dos tubarões do empresariado e do setor financeiro, cancelando, aos poucos, as causas progressistas.
Com Geraldo Alckmin tendo mais destaque que o PT, Lula já não contraria de forma enérgica o teto de gastos, passou a aceitar a temerosa reforma trabalhista, e já se fala na participação da iniciativa privada na saúde pública, nos preparando para o momento em que Lula irá privatizar a Petrobras. As narrativas de Lula estão mudando pouco a pouco, como um pelego que cada vez mais se submete aos interesses dos grandes donos do capital.
E Lula já está se reunindo com autoridades dos EUA, sinalizando que será um político obediente aos desígnios de Tio Sam. E muita gente ingênua ainda acreditando que o Lulão dos sindicatos dos anos 1970 continua firme e forte e apenas está "adormecido pelas circunstâncias", por estar ocupado demais negociando com a direita moderada.
Não está. O Lula esquerdista acabou para sempre. Desapareceu. Não tem mais retorno. E escrevo isso quando Breno Altman, no Brasil 247, sentiu estranheza quando soube que Geraldo Alckmin afirmou que o governo Lula não vai revogar a reforma trabalhista. Acredita Altman que Alckmin contradisse as promessas de campanha do titular da chapa presidencial eleita.
Só que Altman deveria saber que o próprio Lula passou a corroborar isso. Sim, esta é a "novidade". E os líderes sindicais que se reuniram com o presidente eleito, no gabinete da transição, admitiram que a revogação da temerosa reforma é "inviável". Lula está mudando as narrativas porque precisa acertar as contas com a frente ampla. E Luís Inácio falou, Luís Inácio avisou que o PT terá menos destaque no governo, enquanto Alckmin terá mais destaque, não sendo um vice-presidente "decorativo".
Altman faz parte da tendência da esquerda-raiz do PT, juntamente com Valter Pomar, José Genoíno e outros. Acreditam eles que é necessário que os movimentos sociais, entenda-se as classes trabalhadoras e grupos como o movimento negro e as tribos indígenas, se mobilizem nas ruas, fazendo passeatas, para pedir ao presidente Lula o atendimento de pautas trabalhistas e agendas populares.
Tudo parece bem intencionado nas mentes de Altman, Pomar, Genoíno e companhia. Correto. Mas há um sério problema. As lideranças sindicais não vão querer se mobilizar, para não ofender Lula, e o pretexto da "reconstrução do país" tende a rumar pela negociação "democrática" em que as elites terão maior peso, embora supostamente houvesse um equilíbrio entre os interesses trabalhistas e os interesses financeiro-empresariais.
Em outras palavras, em que condições haverá manifestações de classes populares como havia no auge dos movimentos sindicais? Que condições permitirão passeatas, greves e tudo o mais, com os sindicatos enfraquecidos e comandados por pelegos, por gente que fica mais encantada com as promessas da Faria Lima em "conversar" com os sindicalistas do que com os trabalhadores que ficarão na mão, recebendo em 2023 o "salário de fome" de R$ 1.320 mais um "agradinho" de R$ 600 do Bolsa Família?
Como as forças trabalhistas e os movimentos sociais irão se articular para fazer manifestações e protestos populares, num cenário em que se desaconselham revoltas, contestações, contrariedades? O Brasil virou uma "bolha" na qual agora só existe uma realidade binária: o bolsonarismo raivoso e o lulismo alegre. Quem está fora disso está fora da "bolha", mas é a "bolha" que decide tudo pelo país, da Cultura à Economia.
É a "bolha" dessa classe média binária, entre a sorridente "classe média de Oslo" dos lulistas e a raivosa "classe média de Varsóvia" dos bolsonaristas, que nos empurra subcelebridades, dialetos "portinglês" - a palavra bullying até agora só aparece no termo em inglês, apesar de eu ter proposto "valentonismo" - , gírias alucinógenas (como "balada"), falsos filantropos (como os "médiuns espíritas"), e hábitos como o gritante fanatismo pelo futebol, que influi até no assédio moral no trabalho, no Rio de Janeiro, onde pode-se até torcer pelo time diferente do chefe, mas nunca deixar de gostar de futebol.
Lula está dentro desta bolha e não irá além de um governo que priorizará a classe média. As alianças da direita moderada com que Lula se envolveu são bem menos flexíveis do que as de 2002 e 2006. Lula está politicamente engessado. Ele não poderá ir muito além de medidas sociais paliativas, o petista simplesmente não pode se impor, ele mesmo admitiu que tende mais a ceder do que a impor seu programa de governo.
Não sejamos, portanto, ingênuos, para evitar repetir a história. As esquerdas orgânicas das quais participam Altman e companhia devem assistir, passivas, a um governo Lula bastante fraco em projetos progressistas, promovendo um neoliberalismo com tímidas concessões ao bem-estar social.
Infelizmente, o Lula esquerdista desapareceu para sempre. Pressionar para que o velho Lula dos sindicatos volte à tona como um leão vigoroso é criar tensões sociais num cenário conciliador que desaconselha tais posturas. Lula paga o preço de se aliar a uma frente ampla demais e a sociedade, por eleger um político carismático que cometeu erros graves em sua campanha.
A relação de Lula com Alckmin lembra a de João Goulart na fase parlamentarista com Tancredo Neves (ancestral político de Alckmin), e é lamentável que os brizolistas atuais fiquem encantados com a Faria Lima - Fernando Brito elogiou um artigo de um farialimer dono da 89 FM A Rádio Rock(feller) - , se esquecendo que Leonel Brizola se irritou com a "solução parlamentarista" do governo Jango e que, se vivo estivesse, teria se revoltado com a aliança de Lula com o "tucano da gema" Geraldo Alckmin.
Paciência. Pressionar pela volta do Lulão dos sindicatos só vai fazer ressurgir o risco de um novo golpe, desequilibrando a estrutura de forças que, bem ou mal, está consolidada. Foram as escolhas que fizeram isso, desde a crise do governo Dilma Rousseff em 2015.
Esqueçamos o Lula de esquerda, esqueçamos o "Brasil feliz de novo" e toquemos o barco na tormenta criada nos últimos sete anos. Muita calma nesta hora e o jeito é aceitar a realidade: Lula virou um pelego, seu governo será neoliberal e está a serviço da "parte boa" da elite do atraso.
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