A traumatizante tragédia da Boate Kiss, na cidade gaúcha de Santa Maria, fez dez anos no último dia 27. Um incêndio causado por um espetáculo pirotécnico durante uma apresentação do grupo "sertanejo" Gurizada Fandangueira causou 242 mortes e 636 feridos e os responsáveis da casa noturna não foram devidamente punidos.
O episódio de 2013 está sendo relembrado pelo documentário Todo Dia a Mesma Noite, série lançada no canal Netflix e baseada no livro homônimo da jornalista mineira Daniela Arbex, lançado em 2017. O documentário é produzido, escrito e narrado pelo repórter Marcelo Canellas e, alem de relembrar a tragédia, mostra depoimentos de familiares das vítimas e o julgamento dos acusados. A tragédia foi agravada pelo fato da Boate Kiss não ter saídas de emergência.
Os quatro acusados, dois sócios do estabelecimento e dois músicos da banda, que animava a festa universitária Aglomerados, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, dentro daquela relação de negócios entre grêmios universitários e o mercado musical brega-popularesco), chegaram a ser condenados a penas variantes de 18 a 22 anos de prisão, mas os advogados recorreram com pedido de habeas corpus e foi concedida liberdade condicional aos quatro réus.
É triste ver que os acusados pelo crime estejam impunes, não bastasse a falta de escrúpulos dos músicos, que não verificaram a falta de condições de se fazer um desnecessário espetáculo pirotécnico para compensar a fraca música de seu "sertanejo universitário" e dos empresários que nunca ofereceram condições de segurança em seu estabelecimento. Puro cinismo deles continuarem em liberdade.
É revoltante o desfecho do episódio e extremamente chocante essa tragédia, que matou as vidas de muitos jovens, assim como o risco do episódio ficar pela impunidade dos criminosos e pelo esquecimento da memória dos brasileiros, sempre com alto risco de sucumbir à memória curta e a passar panos quentes em acontecimentos de extrema gravidade, mas que não afetam o cotidiano solipsista da "boa" sociedade.
Para piorar as coisas, nos trend topics do Google houve um item relacionando Boate Kiss com o Espiritismo brasileiro, esse Catolicismo medieval de botox que tenta agora sair da toca, aproveitando a positividade tóxica que sempre foi o marketing dessa religião retrógrada que cheira a mofo igualmente tóxico.
São páginas falando das mesmas bobagens de sempre, pretensamente "à luz da doutrina espírita", na qual até juízos de valor bastante ofensivos, como acusar as 242 vítimas do incêndio de terem sido "nazistas" em outra encarnação, ou em pretensas mensagens "espirituais", tudo isso enganando impunemente a boa-fé dos brasileiros dentro desse fétido esgoto de impunidade e total falta de escrúpulos que aqui recebe o nome de Espiritismo.
Eu, que já segui essa religião por 28 anos, sem que ela me trouxesse uma meia-gota sequer de benefício, já pude comparar a Boate Kiss com um "centro espírita" situado no bairro do Uruguai, na Península de Itapagipe, em Salvador, e comparei as situações de falta de segurança.
Os cultos das noites de sábado, que frequentei - e nas quais tive que enfrentar a provação de esperar muito para um último ônibus para o Iguatemi - , mantinham as portas do estabelecimento trancadas, o que, em caso de incêndio, poderia render uma catástrofe não muito diferente da casa noturna gaúcha, com o agravante de que os fios irregulares, os "gatos de energia elétrica" no local, poderiam piorar a tragédia.
Essa religião, sabemos, tem como maior expoente é um retrógrado "médium" medieval que usava peruca, servia aos "coronéis" do gado Zebu de Uberaba e foi um dos maiores apoiadores da ditadura militar de fazer o torturador Brilhante Ustra ficar de queixo caído, produzia literatura fake e está associado a uma suposta caridade que não trouxe resultados sociais concretos nem significativos, sendo glorificada sem o menor fundamento lógico.
O "médium" também teve a atrocidade de acusar, sem fundamento nem embasamento algum, a gente humilde do Grande Rio, vítima de outra tragédia, o incêndio no Gran Circo Norte-Americano em Niterói, de ter sido "uma horda de romanos sanguinários". E mesmo assim o "médium" recebeu, de políticos da ditadura militar, o título de "Cidadão Fluminense" em 1974, e a concessão, sem um pinto de mérito, do seu triste nome a uma "avenida de ciclovia" no bairro niteroiense de Piratininga.
A prática de literatura fake, os psicografakes, em que uma pessoa viva se passa por diversas identidades de pessoas mortas, difundindo mensagens que sempre destoam de aspectos pessoais, mesmo sutis, atribuídos aos falecidos, um procedimento que só é levado a sério no Brasil, pois lá fora a paranormalidade é ainda um mistério.
Se, lá fora, até a nossa querida e saudosa Brittany Murphy já está associada a mensagens "espirituais" fake, além de supostos contatos espirituais vindas de atrizes que nem eram muito íntimas da "patricinha de Beverly Hills", mostrando o quanto o senso de paranormalidade ainda depende de estudos cautelosos, aqui a coisa deveria ser ainda mais cautelosa, evitando as práticas que, infelizmente, se multiplicam a ponto de haver "médiuns", mesmo os ditos "conceituados", que se julgam "donos dos mortos", sempre tendo uma "personalidade" sob sua posse.
E no caso da Boate Kiss, os coitados que faleceram sob o cenário dantesco de um incêndio num lugar fechado, com seus prantos ressecados pelo fogo que queimava seus corpos, sem poder se salvarem, ainda têm seus nomes explorados por um bando de gente que tenta nos fazer crer que recebeu supostas mensagens dos falecidos.
É muito triste, isso. Uma jovem chamada Stéfane Posser Simeoni, não bastasse ter seu nome usurpado numa suposta mensagem espiritual, o pretenso "médium" teve o descaramento de não ter o escrúpulo de caprichar na sua fraude, publicando uma mensagem rasurada, que circula na Internet, incluindo a reconstituição de um processo de fraude através desse exemplo pouco sutil. Vale buscar na Internet porque a fraude é vergonhosamente gritante.
Aqui o que reina é a pieguice que permite que até quem deveria investigar as psicografakes, como jornalistas, juristas e acadêmicos, prefira o terreno confortável da complacência, do cômodo e tranquilo hábito de ficar passando pano nos aspectos sombrios dos "médiuns". Até parece que tais pessoas ficam enfeitiçadas por esse horrendo "canto de sereia" que parte de "médiuns" feiosos.
Chega-se à insanidade de se permitir que as pessoas "tenham direito" de acreditar ou não que uma obra foi escrita ou não por uma personalidade morta. Isso é um grande convite para a impunidade, um estímulo para a mais abusiva falsidade ideológica, acobertada pelos pretextos de "caridade" e "ensinamentos cristãos". Coisa das mais deploráveis! A fé permitindo o desrespeito à individualidade e à memória pessoal dos que morreram.
E além do mais, o "maior médium" do nosso país tem aspectos macabros que deveriam ser voltados à tona, pelos mesmos canais de streaming que agora estão exibindo documentários de true crime. Pois há o caso do sobrinho do "bondoso homem", um jovem chamado Amauri Pena, que foi morto por provável envenenamento e há suspeitas de ter sofrido maus tratos em um sanatório de Minas Gerais.
O sombrio episódio, ocorrido há mais de 60 anos, mancha de sangue podre a reputação do tal "lápis de Deus", que teria consentido que um dirigente "espírita" desse fim ao rapaz, que ia fazer denúncias de fraudes "mediúnicas" que iriam derrubar muito "peixe grande" do Espiritismo brasileiro, inclusive o "médium" que quase foi para a cadeia pelo mal que fez à memória de Humberto de Campos. O caso Amauri faz o caso da pastora Flordeliz parecer chanchada da Atlântida.
Não dá para os jornalistas investigativos aceitarem desmentimento de suspeitos. É necessário uma investigação apurada e crítica, sem passar pano e sob o risco de derrubar "vacas sagradas" desse Catolicismo medieval repaginado, porque ninguém está acima da lei, nem mesmo religiosos que as pessoas estão habituadas (e mal acostumadas, diga-se de passagem) a adorar.
As pessoas falam tanto em Allan Kardec, mas ele certa vez havia dito que "é preferível que caia um único homem do que todos os que forem enganados por ele". E quem combate fake news mas legitima as psicografakes, mesmo as que ostentam nomes como Humberto de Campos, Raul Seixas, Domingos Montagner, Hebe Camargo etc, está caindo em vergonhosa contradição.
E aí não há como ter moral para protestar contra a impunidade dos acusados pela tragédia da Boate Kiss, se adota uma atitude complacente e até cúmplice em relação aos "médiuns", charlatães exploradores de fraquezas emocionais humanas, obscurantistas religiosos com trajes dos anos 1940, ideias do Século XII e que se promovem a custa de palhaçadas como "datas-limite" e "crianças-índigo".
Neste caso, tão deplorável e tão vergonhosamente revoltante quanto ver jovens sendo mortos, pelo incêndio criminoso de um espetáculo pirotécnico, é ver usurpadores da fé se aproveitarem da emotividade das famílias - como o próprio "médium" de Uberaba fez no seu auge, se promovendo às custas das tragédias alheias - para usurpar as memórias dos mortos, como um segundo assassinato.
Ver que uma parcela de vivos, no Brasil, fazem o que querem com a memória dos mortos é algo que nem a desculpa da "caridade" se justifica.
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