GLAUBER ROCHA, NO PROGRAMA ABERTURA DA TV TUPI, EM 1979, EM QUE CITA O LULA COMO UM LÍDER POPULAR, E A ADAPTAÇÃO DA CAPA DO ÁLBUM GOO, DE 1990, INDICANDO O APOIO DA BANDA ESTADUNIDENSE SONIC YOUTH À CAMPANHA DE LULA E FERNANDO HADDAD.
Quando vejo o Lula de hoje descumprindo sua promessa de reconstruir o país, se apressando para viajar para o exterior enquanto hesita em implantar seu projeto de reconstrução nacional, mais preocupado em punir bolsonaristas, e quando vejo o atual presidente da República adiando para maio o urgente aumento do salário mínimo, que não será mais R$ 1.320 (valor já medíocre) e sim R$ 1.302, eu me ponho a pensar.
Lula errou muito em sua campanha e hoje é aliado dos gurus do mercado e do neoliberalismo. O petista mudou para pior, e parecia que era ontem que eu gostava de ouvir Lula falando, com segurança e inteligência, nas entrevistas que eram feitas quando ele estava preso. Até 2020, eu admirava Lula - que em 2003 me incentivou, com seu exemplo de leitor de livros, a ler mais livros - , mas depois de 2021, quando o petista resolveu fazer o papel de "mascote da Faria Lima", me decepcionei, indignado.
Vejo, de vez em quando, manifestações do passado remoto ou do passado mais recente evocando o mito de Lula, seja como um político de vanguarda, seja como o antigo líder sindical. Há poucos dias, vi um vídeo do programa Abertura, da Rede Tupi, de 1979, com o cineasta e apresentador Glauber Rocha fazendo seus comentários, fazendo insólitas comparações entre Super-Homem e Frankenstein e mostrando um homem nordestino, Severino, que ficava quieto e sorridente ao lado.
Nesta época, eu, com oito anos de idade, me assustava com a abertura do programa Abertura, com aquele desenho do olho enorme com um céu no globo ocular. Grande bobagem minha, criança que eu era, mas hoje percebo o quanto o programa foi importante e Glauber Rocha faz uma grande falta hoje em dia. Mas se até seu grande amigo Arnaldo Jabor não está mais entre nós...
No vídeo que eu vi, Glauber fazia vários comentários, fazendo críticas sobretudo ao cinema brasileiro, que vivia da burocracia financeira da Embrafilme e estava fazendo filmes com enredo que o cineasta de Terra em Transe achava ruim. Em dado momento, citando personalidades que ele admirava, ele descrevia o sindicalista Lula, às vésperas de lançar o Partido dos Trabalhadores, fundado no ano seguinte, como um "líder popular".
Nas minhas reflexões diárias, me lembro de outros manifestos em favor do mito de Lula, e temos o caso interessante da adaptação do desenho de capa do disco Goo, que o grupo novaiorquino Sonic Youth lançou em 1990, com Lula e Fernando Haddad desenhados no estilo da ilustração original, sinalizando que a banda de Thurston Moore e Kim Gordon, conforme mostra sua página oficial no Instagram, estava apoiando as candidaturas petistas brasileiras, para a Presidência da República e para o Governo do Estado de São Paulo.
Fico com o coração partido vendo esta e outras manifestações pró-Lula. Gostaria mesmo de crer que o Lula de hoje é o mesmo Lula esquerdista de sempre. Não consigo. Os fatos não deixam. Lula faltando a debate na TV durante a campanha presidencial, afirmando que não vai revogar reforma trabalhista, que adia aumento salarial do povo enquanto se apressa a aumentar o seu e os dos poderes Legislativo e Judiciário. Lula tendo o neoliberal da gema, Geraldo Alckmin, como vice-presidente, já estreando no governo interino durante a ausência do titular.
E Lula viajou para encenar o papel de imitador de si mesmo. Lula trocando a chefia do Exército brasileiro. Lula acompanhando a tragédia dos índios Yanomami. Lula viajando propondo uma moeda comum dos países latino-americanos. Lula reencontrando o amigo José Mojica, ex-presidente do Uruguai. Lula prometendo se encontrar com Nicolás Maduro e recuperar a parceria com a Venezuela. Lula se destacando na Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC).
Que Lula deixou o esquerdismo para trás, isso é verdade. Tanto que o termo "democracia" é usado com muita ênfase, mas soa como um eufemismo para um projeto de governo popular que, no entanto, parece favorecer mais os ricos do que os pobres, estes beneficiados por medidas paliativas.
Mas Lula persegue o mito de si mesmo, ele quer repetir 2003, quer fazer um governo "mais à esquerda" mesmo com aliados e propostas de direita moderada. Mesmo que seu governo seja um genérico do projeto político de Fernando Henrique Cardoso, diferindo apenas por uma leve inclinação social e um controle rigoroso no apetite privatista, Lula tenta realimentar o carisma conquistado pelos dois mandatos anteriores.
O Lula orador, o Lula amigo do povo, o Lula das grandes proezas políticas, Lula chorando ao falar do passado sindicalista, ou mesmo o mito do sindicalista que não existe mais, mas que permanece no imaginário sentimental de seus seguidores. No entanto, sabemos que esses mitos são apenas simulações, "hologramas" vivos de um político que se tornou neoliberal.
É como se Lula perseguisse seu próprio mito, multifacetado entre o antigo líder sindical, do qual hoje não resta uma sombra, e o governante realizador de proezas, passando pelo líder popular que "se perde" abraçado a uma imensa multidão.
Mas é como se esse mito fugisse dele, fosse apenas uma projeção afetiva dos seguidores e simpatizantes dos mais diversos. Um mito que já teve seu grau de realismo, pois, com as acusações de peleguismo que já eram feitas contra Lula já na sua carreira sindical, ele ainda tinha algum vínculo com as causas progressistas e trabalhistas.
Hoje Lula eliminou todo seu esquerdismo. Ele hoje apenas é um arremedo de si mesmo, embora sabemos que seu esquerdismo acabou para sempre, pouco importando as esperanças dos esquerdistas de raiz, como a "esquerda do PT", que ainda sonha com uma hipotética pressão popular para fazer renascer o "Lulão esquerdão dos sindicatos".
Com sindicatos enfraquecidos, com os dirigentes sindicais aliados dos patrões, não há como retomar as antigas lutas sindicais. O proletariado será ouvido? Não. O proletariado é considerado "feio" pelas esquerdas identitárias que tomaram as rédeas do petismo, hoje. E os movimentos sociais hoje estão mais próximos de um carnaval de rua do que de protestos políticos de verdade.
É irreversível o rompimento do Lula com o esquerdismo. Os ritos "esquerdistas" são apenas o que restou de algum progressismo morno que não desagrada o "mercado", mas nada que um governo Sarney tivesse sido incapaz de fazer.
É triste dizer que o mito de Lula, tão agradável e atraente, do antigo sindicalista, líder popular, político de vanguarda, é apenas uma fantasia, um sonho. Sei que até mesmo muita gente mais velha do que eu prefere o sonho à realidade, na sua luta diária de impor a fantasia sobre o realismo, algo que agrega mais pessoas, lacra a Internet, faz muita gente compartilhar a mesma causa. Quem não quer que a fantasia agradável substitua a realidade incômoda e sombria?
Mas, infelizmente, quase sempre isso é impossível. Por mais que as pessoas se esforcem em acreditar que o Lula que preside o país é o mesmo líder sindical "mais amadurecido", o atual presidente do Brasil, até pelos erros e estranhezas cometidos nos últimos anos, mudou para pior, sendo hoje um mero político profissional e mais inclinado ao neoliberalismo do que às causas progressistas.
Tanto isso é verdade que Lula, tão apressado que dizia estar em reconstruir o país, já desperdiçou três semanas de seu novo governo, "sete meses" de seus "40 anos em 4", só para punir bolsonaristas, fazer reuniões e realizar viagens. Até agora ele não começou a governar, ocupado em fazer o papel do "grande líder mundial". E, mais uma vez, Lula vê seu mito fugir dele mesmo, apesar dos lulistas mais exaltados confundirem mito e realidade.
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