Pode ser uma visão absurda, mas a acusação que os bolsomínions fazem da mídia venal como "comunista" ou "petista" tem um ponto compreensível.
É porque, na verdade, a mídia não é esquerdista, ela é que anda sendo cortejada por esquerdas débeis, por um mainstream esquerdista que até lacra na Internet e bomba na blogosfera, mas vive de passar pano no culturalismo cultural de direita.
E o culturalismo cultural se define com o mito do Estado patrimonialista, pela pedagogia infantil nas famílias ou pelas relações de abuso hierárquico de patroas sobre empregadas domésticas?
Sim, mas é muito mais do que se imagina.
Se as esquerdas chegam a cortejar um Waldick Soriano, reacionário e apoiador da ditadura militar - embora suas canções tivessem sido censuradas, mais por chiliques e mal-entendidos de censores do que de algum conteúdo supostamente subversivo - , isso é culturalismo conservador.
Se há a defesa das esquerdas à música brega-popularesca e sua simbologia de valores culturais que reduzem o povo pobre à caricatura de si mesmo, isso é culturalismo conservador.
Lendo o livro Esses Intelectuais Pertinentes..., o leitor tem a exata noção dos absurdos que intelectuais badalados expressavam no verão do "combate ao preconceito" de 2002-2014, incluindo precedentes a essa época e prosseguimentos nos dias atuais.
Um culturalismo conservador que, pelo discurso "positivo" e pela ideia da "felicidade do povo pobre", enganou as esquerdas direitinho durante anos.
Esse culturalismo desviou o povo dos movimentos sociais em nome do entretenimento brega e abriu caminho para o golpe de 2016. Não estou dando espóiler do livro, que existe para ser lido e não para fingir que sabe daquilo que não foi lido.
As esquerdas morderam a isca e acolheram qualquer direitista que prometesse a paz mundial, carregasse uma criança negra e pobre no seu colo e falasse em palavras mágicas que vão da sustentabilidade à mobilidade urbana, da solidariedade à interatividade.
E, o que é pior: não acolheram esses direitistas como se fossem "gente de fora que merece diálogo". Iam logo tratando elas como se fossem gente de dentro da esquerda, mesmo, pouco importando se seus indivíduos eram, em boa parte, ligados ao PSDB ou mesmo à ditadura militar.
Qualquer filhote da ditadura que falasse em "interatividade" e posasse de "grande intelectual" virava, imediatamente, um "representante do marxismo brasileiro", assim de graça, sem motivo algum e muito menos mérito para tal qualificação.
As esquerdas, infelizmente, se viciaram pelos pontos de vista da mídia venal, sobretudo a Rede Globo, pelo suposto apelo popular, e a Folha de São Paulo, pelo verniz intelectual que representa.
Depois de se horrorizarem com as hidrofobias do Jornal Nacional contra as esquerdas, se distraem com o analgésico entretenimento da novela das nove.
Até aí, nada demais. O problema é quando as esquerdas pautam a realidade a partir do que veem na ficção "realista" dessas novelas do horário nobre da Globo.
Pautam o "funk" com base no que veem na festividade dramatúrgica dos "núcleos pobres", que são a parte cômica das novelas e descritos de maneira caricatural e estereotipada, pior do que os antigos foliões carnavalescos das chanchadas dos anos 1940 e 1950.
Cortejam o "médium de peruca", mesmo tendo sido ele um direitista ferrenho (seria bolsonarista incurável, se vivesse hoje), como se, invertendo o fato de Nelson Xavier tê-lo interpretado no cinema, as esquerdas vissem no "médium" o "Nelson Xavier" bonachão e bondoso da ficção novelesca.
Imaginam o craque de futebol como um Cauã Reymond saindo da favela, jogando num time local e fazendo muitos gols.
E a mulher siliconada como aquela pobretona "sensual demais" que rompe com seu namorado para se empoderar como subcelebridade de sucesso.
E tudo isso sob os conselhos de uma intelectualidade alienígena que veio da mídia venal para passear nos círculos esquerdistas, se aproveitando de sua carteirada profissional e acadêmica para defender, "com categoria", a degradação da cultura popular.
As esquerdas insistem nessa ilusão, porque nela há pobres supostamente felizes, enganados com a promessa de prosperidade sem precisar romper com as simbologias sociais da pobreza ou mesmo da inferioridade social.
Até hoje todos se calam quando se alerta sobre esses "brinquedos culturais". Não há autocrítica das esquerdas, não há uma vírgula de arrependimento ou de decepção.
Jogam os "brinquedos" para dentro do armário, fazem cara de muxoxo e ficam quietas. Até surgir o momento para brincar com eles numa ocasião favorável a elas.
E isso faz parte de uma guerra híbrida, uma guerra cultural que contamina as esquerdas com valores da direita cultural, minando-as por dentro.
Não por acaso, a campanha do "combate ao preconceito" deu no golpe político de 2016, que é o tom do meu livro Esses Intelectuais Pertinentes....
As esquerdas foram seduzidas por essa campanha, que desmobilizou o povo pobre fazendo-o se ocupar demais no divertimento identitarista da bregalização, prisioneiro de sua própria caricatura, e, com isso, as próprias esquerdas viram sua base de apoio, as classes populares, ir embora.
Em compensação, a mídia venal, que promoveu a bregalização, se empoderou. Inútil dizer que a bregalização ocorreu às margens da mídia, quando nomes apoiadores tanto da ditadura quanto do PSDB e do bolsonarismo, como Luciano Huck, Sílvio Santos e Otávio Frias Filho, foram seus divulgadores.
Se as esquerdas não romperem com esses "brinquedos culturais", por mais agradáveis que estes lhes pareçam, o Brasil corre o risco de se aprofundar ainda mais em novos golpes.
O Brasil não é o "núcleo pobre" das novelas das nove. A realidade é muito mais dura e sombria do que mostra o "paraíso de esperança" nas redes sociais.
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