Um texto do jornalista Guilherme Múcio exagera na exaltação do falecido funqueiro MC Duda do Marapé, assassinado de maneira misteriosa, como outros MCs locais num curto prazo de tempo, há dez anos.
Evidentemente lamento as mortes violentas dos funqueiros, em boa parte sob suspeita de violência policial, porque realmente a violência não compensa e os funqueiros não são, em maioria, criminosos.
Não existe motivo algum para promover mortes de qualquer espécie, sobretudo contra os funqueiros. Entendo que o "funk" é apenas um entretenimento, um lazer, um divertimento lúdico e musical comercial.
Mas isso também não é pretexto para atribuir genialidade ao "funk".
Creio que a violência policial, suspeita da repressão e morte dos funqueiros e do abuso nas intervenções dos "bailes funk", acabou se tornando propagandista acidental do gênero.
Daí que veio a intelectualidade "bacana", a mesma descrita no meu super-livro Esses Intelectuais Pertinentes... - de longe o que melhor explica os fatores culturais para o golpe político de 2016 - , glorificar o "funk" como se fosse a "revolução sócio-cultural brasileira".
Isso fez as esquerdas médias - espécie de mainstream dos movimentos progressistas - acharem que o "funk" como a "salvação da humanidade".
Sempre que ocorre uma crise num governo golpista, como o de Temer e de Bolsonaro, algum articulista sai da toca e exalta os "superpoderes" do gênero que tem em MC Fioti seu ícone mais recente.
E aí vem todo aquele discurso cheio de pensamentos desejosos, que, embora tentem "combater o preconceito", jogam mais preconceitos para o "funk".
Indo para o caso de MC Duda do Marapé, conhecido pelo hit "Lágrimas", marcado pelo famoso "tamborzão" (batida eletrônica que imita batuques de umbanda; diz a lenda que isso foi adotado como pagamento de dívida de empresários-DJs a despachos de pais-de-santo), o exagero é notório.
Guilherme Lúcio descreve o MC como "o mais genial MC do funk de SP" e, ao lado de outros MCs santistas assassinados, "referência de cultura".
Sonhando alto demais, Guilherme chega ao cúmulo de escrever o seguinte: "Qual seria o tamanho do cantor se ele não fosse assassinado?". Talvez fosse maior do que o "medíocre" Antônio Carlos Jobim e o "chato" do João Gilberto, não é, moçada?
Se for pelo que nossos intelectuais e jornalistas falam do "funk" musicalmente, a (falsa) impressão que se tem é que o ritmo é uma mistura de Nação Zumbi com Velvet Underground.
Se for pela atitude política, pensamos que o "funk" seria uma mistura de Ernesto Che Guevara (com sua ternura e poesia dentro), Joe Strummer, Antônio Conselheiro e Andy Wahrol.
Mas é só ouvir o "funk", ver suas apresentações, que todas as ilusões se derrubam. Que enfrentamento se espera quando os funqueiros vão se apresentar felizes nos palcos da mídia venal? Cadê a tensão tão esperada nos supostos enfrentamento (funqueiros) e apropriação (mídia venal)?
E por que as esquerdas médias exaltam tanto o "funk" e acham contundente qualquer letra de suposto protesto social?
É porque até elas sofrem algum tipo de ressentimento, que não é um patrimônio exclusivo dos bolsonaristas.
Há roqueiros ressentidos que viram colegas como Roger Rocha Moreira virarem fascistas e Paulo Ricardo, direitistas moderados.
Há um ressentimento em ouvir a MPB autêntica de cabeça erguida, porque sua agenda temática, de fina poesia humanista, irrita os esquerdistas médios, que não aguentam ouvir Tom Jobim falando de pássaros e Milton Nascimento, sobre amizade.
Há até uma inveja, partida de gente como Pedro Alexandre Sanches, contra Chico Buarque, sempre solidário a Lula e Dilma Rousseff e sempre assinando movimentos e manifestações progressistas, dos quais nenhum deles teve a assinatura do "bom esquerdista" fundador do Farofafá.
Há esse ressentimento com o Rock Brasil e a MPB e tudo que soe musicalmente repugnante e grotesco passa a ser considerado como "corajoso, desafiador e admirável".
É a chamada "síndrome do contra": atribuir qualidades superiores a quem, por sua mediocridade ou algum caráter considerado abjeto, fosse incapaz de ter essas atribuições.
E aí vemos o quanto roqueiros frustrados de esquerda recorrem ao "funk" como o único foco de rebeldia e transgressão viável, cansados eles estão em verem seus colegas velhos e reacionários e os emepebistas (supostamente) isolados da sociedade.
O "funk" nunca foi revolucionário e muito menos esquerdista, pois sua lógica é neoliberal, seu comercialismo, embora enrustido, é evidente, e sua precarização já envolve a atividade musical, de qualidade bem ruim, diga-se de passagem.
Há músicos no "funk"? Algum baterista, baixista, arranjador? Há MC realmente instrumentista? Há alguma melodia bem elaborada, com arranjos e aprimorada concepção musical?
Não há como dizer que essas condições são meramente escolásticas. Se fosse assim, o samba original, com sua forte preocupação não só rítmica, mas instrumental, não teria tido sua razão de ser. E o samba se ramificou em várias vertentes porque tinha uma forte riqueza instrumental.
O "funk", não. O ritmo nunca passou de um mero karaokê, padece pelo seu não-assumido mas inflexível rigor estético, nivelado por baixo, sua batida sonora é a mesma para todo mundo, só variando de temporada em temporada, e há uma divisão rígida e hierárquica entre DJ e MC.
Há também a aberração de conjuntos com MC e dançarinos.
Muito do que se produz de "funk" poderia ser colocado em vídeos sobre as músicas consideradas "vergonha alheia". São tão ridículas que parecem terem vindo de algum programa humorístico popularesco.
No entanto, seus intérpretes reclamam a mesma reputação de Tom Jobim, Luís Gonzaga, Chico Science, João Gilberto. O "funk" é uma porcaria mas seus intérpretes, tomados de discurso vitimista, ficam se achando.
E a intelectualidade, que deveria questionar tudo isso, é a primeira a não só passar pano, mas a exaltar abertamente.
E aí criam um preconceito "positivo", que fala mil maravilhas do "funk" que são facilmente dissolvidas, feito castelo de areia pelas águas do mar, ao se ouvir um CD ou ver uma apresentação ao vivo.
É muita idealização intelectual, mas a verdade é que esses intelectuais são pessoas frustradas de algum modo, desiludidas com os tempos pós-1990 em que vivemos, e resolveram achar que a esculhambação artístico-cultural é a "salvação do planeta".
E aí vemos que, de vez em quando, as esquerdas sentem, como quem sente coceira na virilha, a tentação de ficarem exaltando o "funk", caprichando no pensamento desejoso.
No fundo, os partidários do "funk" são muitíssimo mais elitistas do que aqueles que rejeitam o ritmo.
É porque os adeptos do "funk" veem no ritmo a pobreza e o protesto idealizados que descem redondo nas suas visões cordialmente etnocêntricas que veem o povo pobre de maneira domesticada e estereotipada.
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