Quando a gente questiona o cenário musical brasileiro de hoje, dominado pela precarização gritante, muita gente não gosta. Essa precarização ocorre de tal maneira que hoje uma boa parte dos estilos brega-popularescos não passam de karaokês metidos a militantes culturais, como o "funk", mas também incluindo o arrocha, o piseiro e a franquia do "funk ostentação", o trap.
Mas mesmo estilos que incluem instrumentos de verdade, como o cenário brega-popularesco dos anos 1990, como o sambrega, o breganejo e a axé-music, também representam a precarização artística, que só enganava muita gente porque nesses estilos os arranjadores das grandes gravadoras, que nos anos 1980 faziam arranjos para a MPB, na década seguinte foram designados a maquiar de falsa sofisticação a mediocrização desse popularesco do passado recente.
Tudo isso é vergonhoso, se levarmos em conta que a música de verdade possui qualidade artística, cultural e expressiva realmente relevantes e autênticas. E, lá fora, temos uma grande lição partindo de um idoso de 81 anos, um músico que não se apresenta com pleibeque disfarçado e que é um notável multiinstrumentista, compositor e arranjador de primeira.
Sim, estamos falando de Paul McCartney, que se apresentou na turnê brasileira deste ano. O ex-baixista dos Beatles é uma das personalidades musicais mais respeitadas do mundo, em que pese ter havido seus momentos de imperfeições aqui e ali. Mas, senões à parte, McCartney deveria fazer os popularescos brasileiros chorarem de vergonha, se esses ídolos brasileiros não fossem arrogantes nem metidos.
Não vou comentar sobre as apresentações do ex-beatle, até porque há muitos textos especializados a respeito, mas Paul, quando estava na icônica banda junto com John Lennon, George Harrison e Ringo Starr, fez muitos adolescentes dos anos 1960 economizar com dificuldade suas mesadas para comprar um instrumento musical e ensaiar na garagem de casa com seus amiguinhos, montando uma banda para fazer frente aos fabulosos de Liverpool.
Os Beatles foram tão importantes que, mesmo tendo sido sua primeira fase excelente e de grande talento melódico, que eles tiveram a coragem de sair da zona de conforto e mudar sua trajetória musical, trocando "I Want to Hold Your Hand" e "Can't Buy Me Love" por "I Am the Walrus" e "Hello Goodbye". Embora tenham causado polêmica com isso, renovaram a música ainda mais.
Vejo com muita tristeza os jovens brasileiros sentirem fanatismo por grupinhos vocais e ídolos popularescos que mal conseguem cantar sob uma base instrumental previamente montada por seus produtores. Ver RBD, Now United e o pop sul-coreano serem alvos de um fanatismo intolerante e raivoso de fazer a fúria dos skinheads parecer festinha de jardim de infância, é assustador.
E o popularesco, então, com esse trap, com seus vocalistas de voz robotizada e batida sonora parecendo som de lata de ervilha, se vendendo como falsa vanguarda e pretenso engajamento social, político e cultural? A imbecilização sonora é gritante, a precarização musical é constrangedora, mas reprovar o trap oferece alto risco de cancelamento tóxico nas redes sociais.
Hoje vemos a música de verdade virar vidraça, numa época em que Carlinhos Lyra sai de cena da vida para se juntar, no além, a Tom Jobim e um sem-número de bossanovistas, nos deixando um dia antes da lembrança dos 57 anos de falecimento de Sylvia Telles, uma das cantoras preocupantemente insuperadas em talento vocal e artístico.
Hoje Tom Jobim, Raul Seixas, Legião Urbana e João Gilberto são alvos de pedradas de um público que acha o medíocre Michael Sullivan o "fino da sofisticação" e se atreve a achar que É O Tchan é "vintage". É uma geração culturalmente terraplanista - embora se passe por "progressista" ou "democrática" - que demoniza o talento, a qualidade artística ou mesmo o bom gosto cultural, preferindo exaltar a imbecilização cultural alimentada de muito coitadismo barato.
E parte desse pessoal foi ver Paul McCartney num contexto em que alguns artistas musicais brasileiros são formalmente respeitados, como Rita Lee, Elis Regina e Milton Nascimento, poupados de receber pedradas por razões protocolares diversas. Milton e Paul se encontrando traz uma grande alegria, mas eles têm 81 anos e, no Brasil, não temos uma renovação decente da música brasileira, perdida entre a MPB carneirinha e o popularesco em geral.
Mas quem é realmente talentoso impõe seu valor, e aí vemos Paul McCartney dando uma grande lição do que é fazer música, diferente dos pretensos panfletos do trap que hoje são o que existe de, em tese, rebeldia juvenil. E ver que, há 55 anos, o mais "imbecil" que os jovens ouviam é "Ob-la-di, Ob-la-da", que é uma grande canção, enquanto hoje o "funk ostentação", como num processo de franchising, compra a fórmula do trap para adaptar para o cenário brasileiro e faturar em cima.
Precisamos contestar a cultura popularesca, pois ela cresce, envelhece e engana todo mundo com sua aparente longevidade alimentada com muito marketing, muito esquema de mídia e até muita monografia universitária, tudo para colocar o pessoal sem talento acima de quem é talentoso.
Daí a lição de um músico britânico cuja trajetória é marcada de muito talento e grande versatilidade, ainda mais se observarmos que Paul é um grande multiinstrumentista, o que faz com que muito "gênio" vitimista do trap, do arrocha, do "brega de raiz" etc fiquem comendo poeira diante da força artística do veterano músico britânico de 66 anos de carreira.
P.S.: Hoje são os 80 anos do amigo de Paul McCartney, o guitarrista dos Rolling Stones Keith Richards. E Paul tocou baixo numa faixa no álbum mais recente da banda "rival" dos Beatles, "Bite My Head Off", do álbum Hackney Diamonds.
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