As esquerdas médias passaram a se acostumar e até aprenderam a gostar de Geraldo Alckmin, pelo menos na condição aparentemente secundária de candidato à Vice-Presidência da República da chapa de Lula. Criou-se uma narrativa, a partir das declarações do próprio Lula, de que o ex-governador de São Paulo complementa o petista e dará uma soma de capacidade técnica no governo do ex-operário.
Alguns analistas de esquerda, como o sociólogo Lejeune Mirhan, exageram ao supor que Geraldo Alckmin tornou-se "esquerdista" e que Lula vai garantir seu projeto político progressista. Aliás, ainda se acredita que Lula ainda se voltará mais à esquerda em relação aos governos anteriores, não se sabe com que toque de varinha mágica ou com que auxílio divino isso vai se dar.
Eu, que costumo juntar peças de quebra-cabeças - é meu "cacoete" de jornalista querendo analisar os fatos; este blogue já deu dois "furos" ao apontar envolvimento de funqueiros com o golpe de 2016 (ver aqui e aqui) - , não vejo que Lula seja capaz de, mesmo com aliados mais à direita, fazer um programa mais à esquerda.
Acompanho o discurso de Lula e vejo que ele deixou para trás muitas promessas. Lula insiste em dizer que "não mudou" e "continua o mesmo Lulão dos sindicatos", mas sou obrigado a ver nisso uma conversa para boi dormir, uma vez que a aliança com a direita moderada vai cobrar do petista restrições ao seu programa de governo para atender dívidas quanto a esse apoio condicional. "Não existe almoço grátis", disse certa vez o neoliberal e Nobel de Economia (1976) Milton Friedman.
As esquerdas médias acreditam que a atuação de Geraldo Alckmin, mesmo tendo sido ele um neoliberal incurável quando governava São Paulo, não irão afetar o programa de Lula, apesar deste afirmar que seu vice não será "decorativo" e que "governará junto", tendo voz e poder de opinião e até de decisão, se for necessário.
Imaginam as esquerdas médias que Alckmin só mexerá em "pontos técnicos" nos quais Lula tenha dificuldade em trabalhar e atrairá para o petista o apoio de forças consideradas conservadoras: empresariado, agronegócio, religiosos evangélicos. Acredita a esquerda mainstream que mesmo um privatista como Alckmin aceitará, de bom grado e alegremente, o titular fortalecendo o Estado e estourando o teto de gastos públicos.
Diante do fanatismo dos lulistas, que ainda sonham com o "governo de transformação" de Lula, apesar de tantos contratempos em sua irregular campanha - na qual, nos bastidores, até a cúpula do PT já deu bronca quanto aos erros e tropeços do presidenciável - , Alckmin faria um papel invertido do que a História do Brasil registra da chapa de Juscelino Kubitschek e João Goulart, eleita em 1955 e que governou o país de 1956 a 1961.
Juscelino era um político da direita moderada, de perfil conservador, mas que fez um governo liberal com acenos progressistas significativos. Seu vice, João Goulart, apesar de ter sido um fazendeiro criador de gado, era um nome de esquerda, filho de um vizinho e amigo de Getúlio Vargas, Vicente Goulart. Jango, como era conhecido, não se considerava socialista como o cunhado Leonel Brizola (engenheiro, que viveu para ser parceiro e até candidato a vice de Lula), mas tinha uma proposta trabalhista mais ousada que o petista.
O governo Juscelino pode não ter levado o Brasil a alcançar a prosperidade, mas pelo contexto político considerado inédito neste país sempre atrasado que ainda é o país em que vivemos, seu governo foi definido como Anos Dourados pela iniciativa de combinar políticas liberais de investimentos estrangeiros com outras de caráter social e progressista.
Enquanto montadoras estrangeiras tinham filiais inauguradas no Brasil, como Volkswagen e Mercedes-Benz, e um automóvel inusitado, Romi-Isetta, era lançado aqui, por outro lado havia um instituto designado para debater de maneira substancial os problemas do Brasil, o Instituto Social de Estudos Brasileiros, o ISEB.
Era uma época que é até mais visceral, em termos de discussão dos rumos do Brasil, do que os dois governos Lula, porque, se estes realizaram algum progresso socioeconômico de maneira quase efetiva, houve no entanto uma sabotagem cultural por conta da intelectualidade "bacana", a partir da "santíssima trindade" de Paulo César de Araújo, Pedro Alexandre Sanches e Hermano Vianna e seu "combate ao preconceito" marcado de muitos preconceitos (ver Esses Intelectuais Pertinentes...).
Só para se ter uma ideia, entre o fim dos anos 1950 e o começo dos anos 1960, as favelas eram analisadas, por intelectuais e jornalistas da época, como um gravíssimo problema habitacional. Mas durante os governos de Lula, a invasão de intelectuais pró-brega nos círculos esquerdistas fez com que as favelas fossem vistas como "modelo de vida", "paisagens de consumo", "paraísos de felicidade" e o povo pobre tratado como se vivesse um Carnaval 365 ou 366 dias por ano, tudo sob o rótulo da "luta contra o preconceito".
Isso fez uma diferença muito negativa. O "combate ao preconceito", temperado com algumas posturas "identitárias", sabotou os debates culturais de Lula de tal forma que fez o povo pobre ser refém de sua caricatura difundida pelo brega-popularesco, o que esvaziou os movimentos sociais, impediu o debate da cultura popular e criou condições não só para o golpe político contra Dilma Rousseff - a fazer seis anos amanhã - , mas para os governos nocivos de Michel Temer e Jair Bolsonaro.
O povo pobre ficou mais pobre, na ressaca do "carnaval permanente" do discurso "contra o preconceito" da diversão popularesca do "funk", do tecnobrega e afins. E a intelectualidade "bacana" quis atirar contra o preconceito e acertou o Ministério da Cultura, no momento desativado depois de uma breve desativação seguida de uma sabotada reativação por Michel Temer. A intelligentzia continuou rica, mas sem as mesadas estatais que recebiam dos governos do PT.
Com esse verdadeiro desserviço à compreensão cultural do povo pobre - contra o qual só o Mingau do Aço, o antigo blogue meu que era o "patinho feio" da mídia alternativa - , a vida das classes populares não melhorou, só piorando, enquanto tudo o que o discurso "contra o preconceito" fez foi fazer os jovens riquinhos cantar e dançar os sucessos popularescos defendidos sob o choroso rótulo de "cultura das periferias".
E aí temos esse estrago causado por 14 anos de "combate ao preconceito", iniciados antes de Lula ser eleito, ainda com Fernando Henrique Cardoso no poder, e dando seus últimos suspiros já com Bolsonaro no poder. Ainda se faz choradeira em prol do "funk", ídolos como Odair José e Michael Sullivan são vendidos como falsa vanguarda, mas felizmente a repercussão não é mais tão positiva assim, a ingenuidade do público já não tolera mentiras lacrimonsas dessa ordem.
E aí vemos o quanto é bem diferente, todavia, o quadro de 1958-1964 e o de 2000-2022. Ainda se insiste em sabotar os debates culturais com a choradeira do "combate ao preconceito", enquanto se pregam soluções meramente paliativas para resolver a pobreza humana, confundindo "minimizar o sofrimento" com "transformar vidas".
E Juscelino tentou realizar muita coisa, embora suas dificuldades não evitassem a crise econômica. Mas Lula realizou relativas façanhas de ordem socioeconômica, mas houve a sabotagem cultural que evitou a volta dos debates que se havia nos CPCs da UNE e no ISEB. Era um meio de deixar a idiotização cultural do popularesco como está e evitar a verdadeira mobilização social do povo.
Embora um Breno Altman acredite que um movimento sindical ou camponês deva se mobilizar para fazer Lula defender pautas progressistas, talvez como um Incrível Exército de Brancaleone do proletariado ou do campesinato, é difícil ver um quadro realmente progressista se desenvolver.
Da mesma forma, também é difícil Geraldo Alckmin fazer um papel de desenvolvimentista, pois será impossível um crossover entre seu neoliberalismo nas medidas econômicas com os projetos sociais de Lula, que se limitará aos projetos de grife. Lula já lançou mais um, Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
Primeiro, porque as medidas de Geraldo Alckmin não terão a grandeza de Kubitschek. E se Lula será um político menos progressista que Jango, a relação Lula-Alckmin não será uma inversão formal da chapa JK-Jango, com resultados igualmente benéficos. Até porque a chapa Lula-Alckmin, neste sentido, está mais próxima do primeiro governo parlamentarista de Jango, comandado por Tancredo Neves.
Teremos apenas um Geraldo Alckmin trabalhando projetos técnicos à maneira do PSDB, como a parte logística das medidas econômicas, tecnológicas e de infraestrutura dos governos FHC, Lula trabalhando com um assistencialismo um pouco mais generoso. E isso num contexto em que, diferente dos anos JK, os sindicatos e o movimento camponês estão desacreditados, a cultura popular foi sabotada pela idiotização popularesca e ao povo pobre se reservam apenas medidas paliativas, sem sair de sua inferiorização social.
Portanto, nada de Anos Dourados. Se o governo Lula deixar para trás o pesadelo escancarado de Bolsonaro, poderá até ser bom. Mas nada de exagerar e achar que o Brasil viverá os melhores anos de toda sua História. Isso será sonhar demais e poderá fazer muita gente despencar das nuvens, e a dor, neste caso, será muitíssimo forte.
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