Parecia que eu estava sentindo, quando não pude fazer o texto do blogue ontem à noite, para entrar no ar às 08:00h. Meu computador exigia uma atualização e eu tive que fazer becape dos arquivos porque a tentativa de atualização anterior, que adaptaria os recursos do Windows 10 para o 11, quase apagou todo meu conteúdo. Por sorte, tive que barrar a atualização para não perder arquivos. Felizmente, todo meu conteúdo foi salvo, depois que, na época, há pouco mais de um mês, entrei no computador pelo Modo de Segurança.
Amanheci vendo, logo na primeira página do UOL, a notícia da morte de Jô Soares. Não imaginava que fôssemos perdê-lo, embora, nos últimos anos, ele estivesse doente, frágil e até com a voz mas fraca. Jô era uma figura cheia de vida, versátil, e uma personalidade que deu tudo de si na cultura brasileira, que hoje sofre de uma decadência patética. Tão patética que muitos acreditam que basta jogar um monte de dinheiro para fazer de um monte de gente sem talento ficar talentosa num passe de mágica.
Jô Soares foi um humorista, roteirista, escritor, diretor, pintor. Teve 66 anos de carreira. Sua grandeza o coloca acima de produções recentes como o humorístico Viva o Gordo (Globo, cujo genérico foi o Veja o Gordo do SBT) e o talk show Programa do Jô (Globo, precedido pelo Jô Soares Onze e Meia, também do SBT).
O versátil Programa do Jô foi um grande programa de entrevistas de muito sucesso, que mostrava o humorista versátil, combinando inteligência e humor com muita desenvoltura. O programa teve a virtude de fazer uma ponte entre o hoje pouco conhecido Silveira Sampaio e o estadunidense David Letterman, principalmente pelo elemento da banda de apoio que foi batizada de Sexteto do Jô.
Para quem não sabe, Silveira Sampaio foi um grande autor teatral e apresentador de TV, tendo sido pioneiro dos talk shows já no fim dos anos 1950. Não existem imagens disponíveis, pelo que eu saiba, dessa experiência, mas Jô Soares não só era fã de Silveira como também foi redator de um dos programas do lendário apresentador das iniciais SS, infelizmente só acessível ao público comum através de pretensas psicografias que mais parecem paródias igrejistas de Sampaio.
Jô Soares, no entanto, era muito maior do que o Viva o Gordo e o Programa do Jô, em que pese a sua brilhante atuação nestes programas. Ele já mostrava seu grande talento quando eu vi, pela TV, nos anos 2000, a chanchada O Homem do Sputnik, de 1959, quando o então "Joe" Soares - Joe é "Zé" em inglês, lembrando que o humorista teve como nome de batismo José Eugênio Soares - fazia um caricato, porém divertido, espião estadunidense.
Outro talento de Jô era conhecer jazz, tendo feito programas do gênero nas rádios JB AM, no Rio de Janeiro, e na rede Antena Um FM, a partir de São Paulo. Dá pena ver empresários e profissionais liberais sisudos, sem o senso de humor e a naturalidade de Jô, aparecerem nas colunas sociais fingindo também gostar de jazz, abraçados com suas lindas esposas mais jovens, arrotando o pedantismo se deixando valer da inspiração do refinado gosto musical do humorista.
Diferente dos coroas que brincam de entender de jazz, escondendo o passado de garotos que nos anos 1970 amavam os Eagles e os Doobie Brothers, Jô Soares levava o conhecimento de jazz como coisa séria, como poucos de sua geração, tendo vivido a oportunidade de um cenário culturalmente rico no nosso país, tendo começado sua carreira praticamente junto com a Bossa Nova. O ano em que Jô começou sua carreira é o ano da canção "Se Todos Fossem Iguais a Você", de Tom Jobim e Vinícius de Moraes.
Quando pesquisei para meu livro 1961 - O Ano que Havíamos Esquecido (disponível na Amazon ou no Uiclap), Jô Soares foi um dos personagens focalizados. Além dele ter trabalhado como redator e roteirista de programas como Simonetti Show e Show a Dois (este apresentado pelos atores Leonardo Villar e Cleide Yáconis), o humorista também se destacou por um programa da TV Excelsior, Cine Jô, no qual satirizava as dublagens dos filmes e seriados de TV estrangeiros exibidos na TV brasileira em 1961.
Também pude ver o filme O Xangô de Baker Street, embora devesse ler o livro. Em todo caso, mostra a inteligência de Jô Soares até mesmo como autor literário, uma atividade que causa muita polêmica, por muita gente achar uma intromissão desnecessária num terreno alheio à carreira mais marcante, o mesmo problema que Chico Buarque sofre por ser um cantor que "se aventura na literatura".
Vale lembrar que uma das questões discutidas, no Brasil de 1960-1961, a respeito da televisão, que começava a se tornar popular, era a predominância dos filmes estrangeiros, alguns dublados, outros legendados. E isso numa época em que televisão só entrava no ar às nove horas da manhã e saía à meia-noite, mas com uma programação melhor e mais diversificada que a TV decadente de hoje em dia.
Jô Soares foi um dos que procuraram contribuir com inteligência para tornar a televisão mais interessante. Sua carreira dinâmica merece ser lembrada e ele, que havia sido um dos últimos remanescentes de uma geração de comediantes que faleceu nos últimos anos, como Chico Anysio, Zé Vasconcellos, Paulo Silvino, Agildo Ribeiro, Orlando Drummond (que não era só comediante mas também exímio dublador) e outros, também nos deixou.
Como um artista do humor, também podemos comparar Jô Soares à grandeza de um Millôr Fernandes, diferenças estilísticas à parte, pelo fato de usar o humor para falar da vida, trazendo lições de vida sérias e relevantes depois da provocação de uma risada. Da pintura ao teatro, passando pela redação de programas diversos, Jô sempre usou o humor para transmitir sua mensagem.
Jô Soares, que sempre foi jovial a vida inteira, agora faz parte da nossa história. É agora um personagem do passado, que nos últimos tempos viveu pelo menos para condenar o golpe contra Dilma Rousseff e criticar o governo Jair Bolsonaro. Ficam suas lições e sua trajetória riquíssima, a servir de bússola para as novas gerações que não se ilude com o viralatismo cultural de hoje travestido de "cultura brilhante".
Precisamos de gente com talento e sabedoria neste Brasil marcado pela mediocridade e pela estupidez. E se boa parte dos nossos grandes nomes não está entre nós, pelo menos eles deixaram um legado significativo que merece ser valorizado na posteridade. E, muito mais do que um "Beijo do Gordo", Jô Soares deixou uma trajetória digna e diversificada. Vá em paz, Jô, e obrigado por tudo.
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