Nestes tempos de glamourização da mediocridade cultural que atinge níveis quase totalitários no Brasil, temos a turma do Supremo Tribunal do Umbigo, a maior instância jurídica do Brasil. Tendo como principal comissão o Tribunal da Internet, do qual uma dupla de internautas convida seus colegas de alguma comunidade mais popular das redes sociais para produzir linchamento moral contra quem discorda de alguma coisa da moda, o Supremo Tribunal do Umbigo é o cão de guarda do "sistema".
Daí que vemos um terraplanismo cultural que inverte as coisas. O que é comercial passa a ser visto como "não-comercial" e vice-versa. Essa maluquice se baseia na glamourização do próprio mainstream, uma tendência, para fins comerciais, de recuperar tendências de sucesso no passado, vendendo-as como se fossem pretensas relíquias culturais.
É como se ocultasse a ideia de comercialismo, como se oculta a ideia de que um Papai Noel do Natal de um estabelecimento comercial - um supermercado ou shopping center - é um funcionário comum contratado. É contraditório, mas se assumir que determinados ídolos do pop comercial ou do cinema ou literatura comerciais são realmente comerciais o pessoal se afasta e recuperar o sucesso resultará em prejuízo. Por isso é preciso vender gato por lebre.
Num país em que há muita hipocrisia, com boa parte dos brasileiros se achando "tudo de bom", se definindo como "diferentes", "alternativos", "vanguardistas", "sofisticados", "nerds" etc, nesse contexto em que "tomar no cool", ou seja, querer bancar o legalzão para ficar bem na fita, na foto e na lacração digital, é a regra, faz sentido essa inversão de valores.
E como, agora, a cultura comercial tenta se vender como "não-comercial" enquanto que a cultura de fato não-comercial é demonizada como ela é que fosse "comercial"? Imaginávamos que essa dicotomia só se expressava como em 2005, quando o cinema comercial se vendia como supostamente "alternativo" através do canal Tele Cine Cult e, em contrapartida, internautas reacionários esculhambavam a música da banda The Police por ser "perfeita demais".
Os faroestes com John Wayne e filmes de ação como Robocop, Desejo de Matar e Duro de Matar acabam tendo o mesmo peso de filmes como os de Jacques Tati e Luís Buñuel, estes sim realmente artísticos. Aliás, pior: como numa edição recente do Festival Varilux de Cinema Francês, cuja propaganda mostrava casais passeando alegremente, todo mundo sorrindo, tudo muito fofo. Cinema "cabeça" são os filmes competentes, mas sempre ultracomerciais, de Steven Spielberg, né?
Enquanto isso, grupos como Police, Legião Urbana, Led Zeppelin apanham dos internautas reaças que agora os define como "comerciais". Houve suposto plágio em "Stairway to Heaven"? Lá vem o Tribunal da Internet chamar a banda de Jimmy Page de "comercial", num reacionarismo tipicamente bolsonarista, mas vestindo a capa do "esquerdismo democrático progressista". Afinal, quem dispara esses ataques é o pessoal "tudo de bom" das redes sociais, né? Gente que toma no cool, é legalzona...
Temos hoje a gourmetização da mediocridade do k-pop a partir do conjunto vocal BTS. No Brasil, temos o falso vintage que quer transformar Benito di Paula e Michael Sullivan em "sofisticados" e vende os ídolos de sambrega Péricles e Leandro Lehart como "vanguarda", além de tentar vender como cult nomes como Gretchen, Grupo Molejo, É O Tchan e até o constrangedor Chitãozinho & Xororó (tive que aguentar ouvir um repertório da dupla tocado em MP3 dentro de um ônibus).
E por que isso acontece? E por que o hit-parade dos EUA é visto como uma verdade absoluta artística, da qual não se pode criticar um espirro de um ídolo veterano que o pessoal das redes sociais sai linchando? E aqui nomes como Ivete Sangalo, Bell Marques, Zezé di Camargo e Alexandre Pires também viraram "verdades absolutas" musicais, durante um tempo ninguém podia criticá-los sem levar uma surra violenta nas redes sociais. Por que será?
Nessa inversão conceitual maluca sobre o que é comercial e não-comercial, o que se observa é que nas redes sociais o internauta médio (e medíocre) define como "não-comercial" aquilo que toca no rádio da atualidade e supostamente fala do dia a dia desse fã. É o ídolo divinizado do pop adolescente, tratado como um deus visionário, mas também pode ser aquele som da "pisadinha" falando coisas do tipo "Ela ligou por meu Zap-Zap", ou a sofrência falando de beber cerveja e dirigir um carrão cheio de "mina".
Por outro lado, o "som comercial" é atribuído aos ídolos veteranos que "ninguém aguenta mais ouvir". "Ninguém" leia-se a turminha da moda nas redes sociais, que se torna a "dona da verdade" de plantão, cumprindo sua carga horária de horas intermináveis no Supremo Tribunal do Umbigo, na comissão chamada Tribunal da Internet.
Quem concorda fica dando curtidas, coraçõezinhos e outros emoticons (como aquele das mãos em prece). Quem discorda é alvo de linchamento digital, com dois ou três internautas comandando e cerca de vinte fazendo o "efeito manada" na truculência digital.
Geralmente o rótulo de "não-comercial" envolve nomes da moda que são alvo da afeição cega dos fãs, enquanto "comercial" é aquele nome excepcional que é xingado por conta de aparentes situações do tipo disputas judiciais de herdeiros de um grande artista morto. Tanto num como em noutro caso há profundos mal-entendidos, que constituem nesse grande terraplanismo cultural.
Afinal, a desculpa de que os sucessos comerciais são "não-comerciais" porque supostamente falam do dia a dia da moçada é uma grande mentira. Como também é uma incoerência chamar um artista de grande talento de "comercial" porque os músicos envolvidos estão disputando um espólio, seja o nome de uma banda antiga ou a herança de um gênio falecido.
Essa falsa dicotomia da inversão entre comercial e não-comercial é um grande erro de interpretação vindo de internautas idiotizados que sofrem da Síndrome de Dunning-Kruger, aquela em que o ignorante tem obsessão em parecer mais sábio do que quem realmente sabe das coisas.
O artista não-comercial, mesmo aquele que se torna rico, não tem o dinheiro como finalidade de seu trabalho, mas como consequência do sucesso de venda de discos e de ingressos para apresentações ao vivo. Muitas vezes o dinheiro aparece como recursos para a sobrevivência, afinal esse artista precisa pagar as contas, se alimentar, e, na velhice, comprar remédios e fortificantes. Classificá-lo como "mercenário" é um disparate, uma grande asneira.
Por outro lado, o ídolo comercial, aquele que faz sucesso na atualidade e que é artisticamente superficial - pode ser um "funk", uma pisadinha, um k-pop, ou algum comercialismo hit-parade ou brega do passado - , parece "não-comercial" por pura falta de compreensão correta da realidade.
É muita fantasia em torno do ídolo divinizado, que no entanto faz uma fórmula musical ou de outra modalidade cultural, como, no cinema, um enredo simplório de um blockbuster ou, na lieratura, uma fórmula de "sucesso", como sagas de estudantes-vampiros, dramalhões de mocinhas traumatizadas perdidas em cenários de florestas sombrias ou de cavaleiros medievais atormentados.
O mainstream não é vanguarda como a lacração também não é. A movimentação e a produtividade intensa dos perfis no Instagram e no WhatsApp pode ser estonteante e empolgante para muitos, mas evitemos falar besteira. A maioria das redes sociais é mainstream, afeita ao comercialismo que não raro é mais rasteiro, embora haja o comercialismo bem-feito, o hit-parade estadunidense dos anos 1970 e 1980, de boas músicasm mas, mesmo assim, feitas para fins comerciais.
Infelizmente, temos muito juízo de valor e o mercado se alimenta disso. Há muita estupidez de avaliação, e isso é horrível. O pop estadunidense (que inclui também forasteiros associados, como ingleses, canadenses, suecos e até italianos) dos anos 1970, 1980 e 1990 é mais elaborado do que o de tempos posteriores, mas nem por isso vamos glorificar e ficar dizendo que isso é "vanguarda" ou "clássico" porque as impressões emocionais assim desejam.
Devemos ser objetivos, e parar com essas avaliações tão tortas, cegas e ridículas. E descer do pedestal, descalçar o salto alto, porque tem muito imbecil na Internet se achando o "dono da verdade", comandando campanhas de linchamento digital contra quem discorda de visões do establishment.
Me lembro do grande Umberto Eco falando que o "idiota da Internet quer agora o reconhecimento de um candidato ao prêmio Nobel". Mas pelo jeito Umberto Eco era um escritor "comercial", né, moçada do Supremo Tribunal do Umbigo?
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