Não existe a menor dúvida de que Jair Bolsonaro é uma figura política nefasta, nociva e cujo mandato foi completamente desprovido de qualquer ação positiva para o Brasil. Também é indiscutível que, se Bolsonaro realizou alguma coisa, foi de maneira negativa, como sua negligência em relação à Covid-19.
O problema é que o Brasil não está encarando a gravidade do bolsonarismo e sua patética trupe de pastores, policiais, milicianos e outros envolvidos num reacionarismo sociopata e claramente raivista como uma coisa complexa. É muito fácil combater o bolsonarismo enquanto entulhos socioculturais bem piores, originários dos tempos do general Geisel, são promovidos a "saudável saudosismo", com um culturalismo que trata o povo pobre como se fosse uma matilha de vira-latas.
Bolsonaro, que anunciou para o próximo dia 25 uma manifestação na Avenida Paulista, está sob risco de ser condenado à inelegibilidade não só por oito anos, mas pelo resto da vida, por conta do seu envolvimento na revolta reacionária de Oito de Janeiro, no começo do ano passado. O inferno astral do bolsonarismo está agitando o seu meio nas redes sociais, em postagens que são produzidas em série, se multiplicam e repercutem muito, mas depois são apagadas para evitar complicações com a Justiça.
Mas Bolsonaro é um subproduto de um culturalismo conservador que, infelizmente, ainda inspira saudade em muita gente, e não se fala de bolsonaristas, mas até de gente dentro das esquerdas.
É o ídolo brega e seu patético sucesso que só se tornou "clássico" porque virou a trilha sonora dos passeios da infância para as praias do litoral paulista que os ouvintes guardaram da memória saudosa de seus finados papais e mamães. Ou então é aquele rabugento "médium de peruca" com suas frases obscurantistas pedindo para os aflitos sofrerem calados e submissos as piores desgraças (AI-5 do bem?) E que são publicadas nas redes sociais para "alegrar o dia", embora houvesse a masturbação dos olhos, ou seja, quando a fé transforma gente grande em verdadeiros bebês chorões, com a comoção humana rebaixada a mero entretenimento.
Tudo isso é tão ruim quanto o bolsonarismo. Reduzir os conflitos humanos a um maniqueísmo entre raiva e alegria é não entender um milésimo da complexidade da vida. Um feminicida, por exemplo, não conquista uma mulher arrancando o cabelo dela nem lhe ameaçando dar um soco, mas porque machistas aproveitam o sistema de valores que sempre lhes favorece para enganar mulheres com falso senso de humor e falso cavalheirismo.
A religião que eu segui durante anos e só me deu prejuízo, o Espiritismo brasileiro, se fundamenta num discurso suave, sem raiva mas sempre sorridente. Verdadeiras atrocidades, como pedir para os sofredores extremos aguentarem, obedientes e sem reclamar da vida, a avalanche de infortúnios sem fim. Uma pauta de fazer Silas Malafaia ficar de queixo caído, mas que, da forma como é narrada, conseguiu enganar muita gente boa das forças progressistas, que chegaram a confundir esse obscurantismo, a Teologia do Sofrimento, com a Teologia da Libertação.
Na música, o "brega vintage" que remete ao culturalismo da Era Geisel, pois o foco do saudosismo é justamente essa época, também enganou muita gente progressista. Ver a arrogância dotada de falsa modéstia de um Michael Sullivan, que se vende como pretenso gênio, se achando "mais forte que o tempo", é nojento. Como é nojenta a "alegria" do É O Tchan, claramente tóxica e sem o menor escrúpulo para promover a erotização infantil.
Isso é para mostrar o quanto a complexidade do bolsonarismo não é entendida pelas esquerdas lulistas, desnorteadas e entorpecidas pelo aparente protagonismo franqueado pelo mesmo STF que, até pouco tempo, se serviu a Michel Temer. O próprio Lula está desnorteado e confuso, querendo reconstruir o país priorizando a política externa, quando a sabedoria diz que não se recupera um doente de fora, mas se recupera por dentro, reconstruindo o Brasil atuando dentro do país e dando um tempo para o turismo político.
E devemos nos alertar para os inimigos internos que deixaram o barco bolsonarista, como, em 2002, os viúvos da ditadura abraçaram o lulismo então ascendente e o reacionarismo tucano dos jovens burgueses do Orkut abraçou, em 2005, e o esquerdismo de fachada. Muita gente aderindo a Lula em troca de subsídios estatais e posando de "comunista de coquetel de luxo", agora botando na conta de Bolsonaro pelos 524 anos de males da História do Brasil.
Dessa forma, os pecados que vão de bandeirantes exterminando índios, senhores de engenhos escravizando negros, "médiuns de peruca" pedindo para aflitos sofrerem desgraças calados e bregas e funqueiros fazendo apologia da miséria humana, tudo isso é absolvido, com a burguesia vira-lata brasileira de banho tomado para passear, com bermudão e chinelos, pelas paisagens de consumo de nosso país sob a máscara leve de "gente simples".
Qualquer coisa é só Bolsonaro pagar a conta, enquanto outros Bolsonaros enrustidos moderam no discurso de raiva e, repaginados, tentam sobreviver ao naufrágio do mito, como capangas do pirata derrotado que migram para o barco inimigo. Para se apropriatem da democracia e privilatizá-la para seus interesses consumistas e hedonista enquanto o povo pobre de verdade continua na sua agonia diária.
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