Muita gente estranhou quando escrevi que o Brasil não merece entrar no Primeiro Mundo. Pensam essas pessoas que tal postura é dotada da mais completa falta de humanismo, que é fruto de algum masoquismo social completamente doentio.
Observando bem, no entanto, percebe-se que não é assim. Pensar que o Brasil ainda é incapaz de alcançar o Primeiro Mundo é uma visão prudente e realista. Afinal, falta uma estrutura sociocultural que permitisse que o Brasil se tornasse realmente um país desenvolvido, condição que não se dá pela cosmética urbanista, econômica e lúdica.
Infelizmente, quando a classe média (segundo critérios do sociólogo Jessé Souza) fala que o Brasil "deve chegar ao Primeiro Mundo", a visão mais parece a de um turista: cidades com estrutura urbana decente, ou seja, com ruas limpas e casas bonitas e arrumadas, criando uma paisagem de consumo admirável, combinada a uma realidade nacional de estabilidade econômica. Além desse aparato agradável, há também o aspecto lúdico, com grande estímulo para a diversão.
Com isso, o que se vê é a adesão da elite do atraso a Lula, agora domesticado e virado mascote dos neoliberais. Afinal, Lula agora é festa, a chamada "onda Lula" é um espetáculo que Bolsonaro, quatro anos atrás, prometeu exercer e não conseguiu. De que adianta Bolsonaro ser o Bozo se quem anima a criançada é o Lula?
Lula promete um espetáculo identitário, lúdico, como um Papai Noel prometendo presentes para a garotada. Sem medir o contexto distópico de nosso Brasil, que impõe obstáculos sérios para a máquina de fazer sonhos do lulismo, esse novo astral brasileiro ancorado no petista pede um "Primeiro Mundo" de fachada, um Brasil transformado num combo que mistura pontos turísticos da Suécia, de Mônaco e do melhor da França num cenário tropical.
Embora se fale muito em "justiça social", em atender demandas sociais como prometer reforma agrária, demarcação de terras indígenas, recuperação de direitos trabalhistas e valorização dos salários dos trabalhadores, o projeto de Lula na verdade só vai atender tudo isso nos limites tolerados pelos neoliberais aliados do petista, o que fará tais promessas serem parcialmente realizadas, se é que serão.
O que Lula vai fazer é criar um "Brasil desenvolvido" de fachada, uma espécie de país sul-americano para turista inglês ver, com cidades arrumadas e bem policiadas, estímulo ao consumo, pessoas cordiais e muitas áreas de lazer.
A classe média festiva e identitarista não consegue ver a vida do pobre com realismo. As elites do atraso, mesmo as declaradamente "de esquerda", tentam julgar o povo pobre com etnocentrismo e juízo de valor solipsista, carregado de algum tipo de meritocracia, mas também de uma visão gourmetizada da pobreza que mal conseguem enxergar através de porteiros de prédios, faxineiros, empregadas domésticas e pedintes que cruzam com os reMEDIAdos do dia a dia.
Por isso, não há como a classe média ser levada a sério quando fala em pautas sociais como forma de provocar lacração nas redes sociais. É fácil e confortável fingir solidariedade aos povos indígenas e se lembrar de vítimas da moda, podendo ser os hoje em evidência Dom Phillips e Bruno Pereira, ou então daquela "sobrinha-neta" da Frida Kahlo chamada Marielle Franco.
Mas para quem também posta danças patéticas que meninos pobres fazem, manipulados na boa-fé pela mídia empresarial - que aposta numa cosmética da "pobreza linda" para anestesiar a sociedade e mascarar as desigualdades sociais - , é uma grande hipocrisia essa "Contracultura de resultados" e esse identitarismo e essa falsa consciência social que facilmente povoa o imaginário de famosos atores e atrizes "globais", subcelebridades e ídolos musicais pop-popularescos.
E isso é vergonhoso quando se nota que uma atriz de Hollywood como Sharon Stone, que muitos veem como "aristocrática", é bem mais respeitosa e relevante como ativista social, postando palestras e depoimentos de personalidades negras, ao passo que os negros, na visão de atores de TV e teatro mais "descolados", aparecem na forma de crianças rebolando forçadas a fazer o papel racista de miquinhos de realejo, para serem aplaudidas pelas elites do atraso que hoje se agarram a Lula.
O desejo da classe média festiva e, agora, lulista, em ver o Brasil brincando de ser Primeiro Mundo é apenas uma vontade de curtir, em território nacional, as belezas turísticas do Hemisfério Norte que são obrigadas a usufruir pagando passagens de avião e sob a inversão sazonal de terem a frustração de passarem o Reveillon sob o frio do inverno, enquanto em julho curtem um pálido período de férias de três semanas com um calor menos voluptuoso que as tradições veraneias brasileiras.
Por isso querem que Lula faça um Brasil "desenvolvido", com todas as aspas. Desejam que ele implante, em território brasileiro, belezas como Saint-Tropez, na França, Monte Carlo, em Mônaco, as praças de Barcelona, os centros históricos da Suécia, os prédios com efeitos de luz neon de Nova York e Tóquio, os prédios antigos de Roma. Talvez haja uma esperança, também, de criar uma Dubai brasileira, de preferência nordestina e sem o ranço bolsonarista de Balneário Camboriú.
Daí que não dá para levar a sério um Primeiro Mundo sem gente do Primeiro Mundo. Uma elite do atraso falsamente esclarecida, com pseudo-consciência social, só preocupada em evitar viajar para o exterior tantas vezes e ser obrigada a encarar a frustração de uma virada de ano sob muito frio e neve. Portanto, é apenas brincar de Primeiro Mundo, se esquecendo das favelas, roças e sertões da gente sofrida da vida real, ausente no mundo da fantasia do Brasil-Instagram.
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