É muito fácil viver no Brasil. Adotar causas retrógradas, se projetar e lucrar por meio delas e, sem medir um único escrúpulo, sem ensaiar um único remorso, embarcar em causas mais avançadas, visando obter vantagens pessoais, ainda que à custa de muita pose de coitadismo aqui e ali.
O Brasil é o país em que um neoliberal doente como Geraldo Alckmin agora se passa por "socialista" e vira queridinho das esquerdas festivas. Ou, no caso local da Bahia, de um Mário Kertèsz que foi prefeito biônico da ditadura militar, é um conservador convicto, mas também foi brincar de "bom esquerdista", sem também esboçar um pingo de arrependimento. Ou "médiuns espíritas" mascarando seu catolicismo medieval (safra século XII) com um falso intelectualismo humanista.
Muda-se de um plano mais retrógrado para outro mais avançado como quem sai do quarto de dormir e vai para a cozinha beber água. E o pessoal gosta desse jeito "Dr. Jekyll & Mr. Hyde" de ser, quando conservadores se passam por pretensos progressistas ou vanguardistas e recebem de presentes uma enxurrada de flanelas coloridas oferecidas pelos passadores de pano de plantão.
E haja passadores de pano, nesse país em que vivemos e que tem o hábito da flanelização cultural, dessa cultura da complacência que gourmetiza todo tipo de mediocridade. Na música brasileira, vemos casos em que a bregalização, que é retaguarda cultural - isso não é opinião, nota-se que os bregas sempre se inspiram em modismos já ultrapassados - , é vista erroneamente (prestem atenção: erroneamente) como "vanguarda".
Recentemente, vi no Instagram um perfil que entrevistou Michael Sullivan e a palavra-chave usada foi #mpbanos80. Sullivan anda tentando se lançar agora como "MPB independente", sendo uma espécie de Geraldo Alckmin da música brasileira, aquele sujeito conservadorzão que quer bancar o moderninho entrando nos meios avançados pela porta dos fundos.
Também li parte do artigo de Mauro Ferreira, um bom jornalista mas exímio passador de pano que serve de exemplo para a turma "isentona" e "imparcial" do jornalismo cultural - leia-se "isento" no sentido do influenciador Monark e "imparcial" no sentido do ex-juiz Sérgio Moro, mas num contexto mais "benevolente" - , no qual Sullivan fala de um disco com um título pretensamente "modernista", Pernamblack, já que o antigo poderoso chefão do brega é natural de Pernambuco.
Num contexto em que são revelados escândalos de desvio de dinheiro para pagar shows com ídolos do "sertanejo" e do "forró eletrônico", é muito grave a reabilitação de Michael Sullivan, que agora usa a MPB que ele quis destruir como trampolim para sua nova carreira, trabalhada há cerca de um dez anos.
Sullivan desenvolveu uma campanha marcada por muito coitadismo, lançou um disco-tributo a ele mesmo com quase todos os nomes convidados de artistas de MPB e, ao longo dos anos, quis se promover às custas de Serguei e Rogério Skylab. Dizem que ele tentou cooptar até o falecido emepebista Sérgio Ricardo, num processo ambicioso de promoção artística do antigo músico e produtor brega.
Isso fica muito fácil porque as narrativas sobre música brasileira priorizam uma abordagem etnocêntrica de uma elite de jornalistas e intelectuais sediada nas áreas nobres do Rio de Janeiro e de São Paulo. Para eles, brega é "vanguarda" pelo simples fato de que só eles quase nunca ouviram esse tipo de música. Qualquer coisa desconhecida vira novidade facilmente, não é mesmo?
Pois Sullivan, cuja música medíocre e constrangedora, pastiche do soul estadunidense, é marcada por falsas rimas - tipo "motivo" e "contigo" - e uma pseudopoesia simplória e piegas, é o suprassumo do viralatismo musical brasileiro, sempre imitando modismos já antigos do pop ianque, não pode de forma alguma ser chamado de "vanguardista".
Esse pseudocult, esse falso vintage que os críticos musicais de Instagram desenvolvem reabilitando ícones da música brega-popularesca dos anos 1970, 1980 e 1990 - nesse embalo inclui a gourmetização de Odair José, a exaltação ao É O Tchan e o culto à versão de Chitãozinho & Xororó para "Evidências" de José Augusto - , só mostra o quanto o Brasil está culturalmente ruim e que, em vez de resgatar os verdadeiros valores da nossa música, prefere recuperar aqueles meramente comerciais.
O problema é o faz-de-conta de que um ídolo comercial é "não-comercial". No popularesco consumido pelos jovens, há até a desculpa de que o ídolo musical é "não-comercial" porque "fala do cotidiano vivido pelos jovens", desculpa esfarrapada mas defendida com unhas e dentes (quem contestar que enfrente o "Supremo Tribunal da Internet" dos sociopatas "donos da verdade").
No caso de Michael Sullivan, ele brinca agora de ser "MPB de vanguarda", com carreira "independente", em um processo comparável ao de Leandro Lehart, do Art Popular. Ambos são nomes comerciais que vendem a falsa reputação de "vanguarda". Mas eles, no fundo, são tão comerciais quanto os bancos Safra e BTG Pactual e seu "vanguardismo" não passa de um jogo de cena para suas músicas meramente mercadológicas.
Não há como levar a sério o pretenso vanguardismo de Michael Sullivan. Isso é mero truque publicitário, um jabaculê mais sofisticado num contexto em que não se faz apenas jabaculê musical em FM (onde o mercado jabazeiro hoje é dominado pelo futebol), mas através de meios acadêmicos e jornalísticos considerados mais "conceituados".
E como falamos dos escândalos do "sertanejo" e dos financiamentos abusivos às apresentações de nomes como Gusttavo Lima, não podemos botar debaixo do tapete toda a perversidade com que o hoje "bondoso" Michael Sullivan agiu para destruir a MPB da qual hoje ele quer um vínculo tendencioso.
Segundo denúncias trazidas em 2014 pelo cantor Alceu Valença, e mencionadas no meu livro Música Brasileira e Cultura Popular em Crise, Sullivan queria implantar o comercialismo pop mais rasteiro no Brasil e jogar sua "hoje tão querida" MPB no ostracismo.
O compositor de "Morena Tropicana" denunciou o poder de ferro de Sullivan, que impunha fórmulas comerciais para os artistas gravarem, para cantores do nível de Valença e Chico Buarque gravarem, que interessava ao diretor artístico da RCA em 1987, ninguém menos que Miguel Plopschi, parceiro de Sullivan nos Fevers. Sullivan era o produtor e, com Paulo Massadas, era uma fábrica de sucessos musicais, no sentido industrial do termo.
Segundo a denúncia, Sullivan e Plopschi queriam lançar o brega, o "novo ritmo" gourmetizado para o consumo de um público mais "selecionado". Transformando os emepebistas em caricaturas de si mesmos - Plopschi e Sullivan queriam que Alceu Valença gravasse um pastiche de "Coração Bobo" e fizesse canções bregas - , eles decairiam e seriam jogados ao ostracismo.
Enquanto isso, os nomes comerciais tutelados por Sullivan & Massadas, como José Augusto e Xuxa Meneghel, ganhariam cartaz, ao lado de nomes musicalmente domesticados da MPB, como Alcione, Roupa Nova e Joanna. A ideia de Sullivan é criar uma sucursal do pop comercial dos EUA no Brasil.
Daí que é um acinte Michael Sullivan se vender agora como "vanguardista" e "independente", se aproveitando da pouca informação da maioria das pessoas, que mal conseguem discernir um caqui de um tomate e, por isso, aceitam com passividade bovina que um poderoso chefão da música brega pose de coitadinho e tente se lançar às custas da mesma MPB que desejou destruir.
É essa a armadilha do discurso do "combate ao preconceito" que descrevo no livro Esses Intelectuais Pertinentes..., obra que muita gente torce o nariz, ocupada em ler livros "espiritualistas" ou ficções sobre cavaleiros medievais, vampiros estudantis, adolescentes atormentadas, cachorros com nomes de músicos etc.
Vamos deixar de hipocrisia. As pessoas são culturalmente midiatizadas e mercantilizadas. Acreditar que Michael Sullivan ou um nome recente como Pabblo Vittar são "música de vanguarda", que a gíria "balada" (©Jovem Pan) foi trazida pelo ar que respiramos e fingir que nunca viu Globo, SBT, Jovem Pan e Folha de São Paulo mas somente redes sociais e canais de streaming são demonstrações de pura falsidade e mentira das pessoas, porque está na cara que tudo isso é comercialismo.
Michael Sullivan está mais para um executivo Faria Lima do contexto musical do que para vanguarda de MPB. Essa é a realidade.
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