Fora das abordagens "sem preconceito" da intelectualidade "bacana", que reflete áreas como o Norte do Brasil como um "paraíso florestal" que "respira folclore 24 horas por dia" (eufemismo para consumo de tendências brega-popularescas), com índios vestindo roupas que lembram jovens estadunidenses e consumindo tecnobrega, pisadinha, brega antigo etc, a realidade na região é muitíssimo cruel.
A máquina necropolítica, em ação desde a ditadura militar, recicla a "justiça" sanguinária que o poder coronelista sempre exerceu, com muitos conflitos no campo e extermínio daqueles que poderiam denunciar essas violências e o poder e privilégio abusivos dos que mandam nessas terras que parecem ter dificuldade de chegar ao século XX, quanto mais ao século XXI.
Nessa longa tragédia, um episódio recente preocupa não apenas o Brasil, mas também a opinião pública internacional, até por envolver um estrangeiro. O jornalista britânico Dom Phillips, repórter investigativo com experiência em colaboração para periódicos como The Guardian, Washington Post, Intercept, Financial Times e New York Times, e o pesquisador indigenista Bruno Araújo Pereira, da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), desapareceram misteriosamente há cinco dias. Até o fechamento deste texto, os dois não foram encontrados vivos ou mortos.
Dom Phillips também é conhecido por uma atividade cultural interessante: foi editor da revista de música eletrônica e pop dançante do Reino Unido, a Mix Mag, e autor de um livro lançado em 2009, Superstar DJs Here We Go!: A Ascensão e Queda do Superstar (Superstar DJs Here We Go!: The Rise and Fall of the Superstar), título inspirado num sucesso dos Chemical Brothers. Phillips, ultimamente, era repórter free lancer do The Guardian.
Foi no último domingo. Dom e Bruno realizaram uma expedição no Vale do Javari, no Estado do Amazonas. Dias antes, eles visitaram a equipe da Vigilância Indígena que se encontrava no Lago do Jaburu. Dom estava coletando várias entrevistas de indígenas e ativistas que denunciassem as ações e a violência de invasores envolvidos com pesca, garimpo e exploração ilegal de madeira.
Quando Dom e Bruno estavam no caminho entre a comunidade de São Rafael e a cidade amazonense de Atalaia do Norte, no último dia 05, os dois simplesmente sumiram. Eles iriam retornar para Atalaia do Norte, mas não haviam chegado.
Bruno sofria diversas ameaças de morte por denunciar as disputas de poder de garimpeiros, madeireiros e pescadores na região onde existe uma reserva de diversas etnias indígenas. O indigenista era servidor licenciado da FUNAI e não estava a serviço da instituição.
Este é um episódio a mais que faz aumentar o desgaste político do presidente Jair Bolsonaro. Pouco preocupado com a gravidade do caso, Bolsonaro se limitou a dizer que os dois desaparecidos fizeram "uma aventura pouco recomendável", acrescentando que "tudo pode acontecer".
Sob pressão das entidades de defesa dos direitos humanos, a Polícia Federal e a Marinha do Brasil iniciaram uma busca, que até o momento de produção deste texto não trouxe resultados. Apenas ontem o delegado de Atalaia do Norte, Alex Perez Timóteo, afirmou que foram encontrados vestígios de sangue na lancha de um suspeito, Amarildo da Costa de Oliveira, conhecido como "Pelado".
Até agora não houve uma conclusão a respeito do que seria esse vestígio de sangue, embora haja a suspeita de que o suspeito foi visto em uma embarcação atrás da que levava a dupla no caminho onde teriam desaparecido. Mas Amarildo foi detido em prisão preventiva, no último dia 07, por posse de drogas e de armas de uso restrito. O caso segue em segredo de Justiça.
Na região do Vale do Javari, várias tribos indígenas, além de terem sua área ameaçada por invasores, sofrem infortúnios que vão de abusos sexuais contra jovens índias a massacres de grupos como Warikama Djapá e os Flecheiros do rio Jandiatuba, crime ocorrido em 2017 e que resultou em impunidade.
O caso dos dois desaparecidos atravessou o último dia 07 de junho, dia da Defesa da Liberdade de Imprensa, comemorado apesar do jornalismo brasileiro sofrer uma grave crise. Sem recorrermos ao sentimentalismo romântico e corporativista da "liberdade de imprensa", o caso de Dom Phillips e Bruno Pereira é preocupante, tanto no que se refere ao sufocamento do trabalho jornalístico e da luta ativista, quanto dos esforços de proteção e preservação dos povos indígenas.
Trata-se, portanto, de uma realidade a ser refletida com muito cuidado, sem o frenesi identitário que transforma causas sociais em modismos e festa. Afinal, é uma realidade triste viver no interior do país, sobretudo no Norte, Centro-Oeste e no interior nordestino, e conviver com abusos de toda ordem sem poder denunciar, já que isso põe a vida humana sob ameaça fatal.
Este é um Brasil sombrio que acontece fora das fantasias felizes dos intelectuais "bacanas". Por trás da máscara do "combate ao preconceito", as periferias da vida real e os povos excluídos vivem seu pesadelo diário que não cabe numa letra de tecnobrega, "forró eletrônico" nem pisadinha, e muito menos no "sertanejo" de boate que recebe verbas abusivas desviadas da Educação e da Saúde.
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