Ações policiais supostamente voltadas ao combate ao crime, nos complexos do Alemão e da Maré, no Rio de Janeiro, como a que matou 14 mortos, vários inocentes, ontem. Feminicídios ocorridos até mesmo na rua e de dia, no Paraná. Protestos violentos de bolsonaristas, vários deles armados, seja fechando rodovias, fazendo vigília nas portas dos quartéis ou mesmo em qualquer parte da rua, pedindo socorro aos extraterrestres (!).
A coisa não é fácil e o Brasil é um país complexo demais para ficarmos em clima de festa. Se a Seleção Brasileira de Futebol venceu a partida de anteontem, contra o time da Sérvia, com gols do emergente Richarlison, causando êxtase e alegria na "boa sociedade" que quer alegria a qualquer preço, a realidade de vez em quando ressurge com acontecimentos dramáticos, que fazem devolver às pessoas uma noção mínima de discernimento e cautela.
A Escola Estadual Primo Bitti, e uma escola particular, ambas no município de Aracruz, no Espírito Santo, foram locais de ocorrências trágicas, por conta de um atentado movido por um adolescente que estudou numa das escolas e cujo pai era PM dono do revólver utilizado no massacre.
Até a edição deste texto, três pessoas morreram e treze saíram feridas, duas em estado gravíssimo. Das três vítimas fatais, duas foram identificadas: a aluna Selena Zangrillo, de 12 anos, e a professora Maria da Penha Pereira de Melo Banhos, de 48.
Não há como entrar em clima de festa, como a classe média que diz agora que "o momento é de amor", aproveitando a vitória eleitoral de Lula para carregar de muita pieguice. Evidentemente eu reprovo o ódio e a raiva, mas não confio nesses discursos de "democracia", "amor" e "união" tanto por serem ideias abstratas quanto por representarem não só a pieguice como a hipocrisia dessa classe média "positiva" que tornou-se protagonista do cenário sociopolítico e cultural pós-Bolsonaro.
Vamos combinar que essa elite é a mesma "elite do atraso" em sua fatia mais politicamente correta, composta em parte de gente que já rosnou contra Dilma Rousseff, que hoje coexiste na causa lulista com aqueles que embarcaram no "bonde do combate ao preconceito" da intelligentzia "mais legal do Brasil" (ver Esses Intelectuais Pertinentes...). São pessoas que sempre foram felizes, mesmo sob Michel Temer e Jair Bolsonaro e agora saíram do armário com a positividade tóxica sob Lula.
Não que o cenário seja de uma polarização pura e simples, com o ódio bolsonarista de um lado e o amor lulista de outro, mas o que ocorre é que temos um cenário complexo de neuroses humanas diversas, acumuladas de um sistema de valores que não consegue sair dos paradigmas da Era Geisel, que atravessaram a redemocratização de 1985-2016 e o golpismo explícito de 2016-2022 intatos, valendo até mesmo sob os dois governos de Lula e um e meio de Dilma Rousseff.
Seria muito fácil apostar num maniqueísmo, com textos que lacram as redes sociais, repercutem fácil entre o público e faz muita gente, se não dormir tranquila, curtir sua insônia na bebedeira boêmia sem sobressaltos.
Só que mesmo a positividade tóxica tem também suas pressões. O lulismo tem seus problemas, vide a campanha desastrada que por pouco não impediu que Lula vencesse as eleições. A obsessão pela felicidade envolve sentimentos piegas que constrangem muitos e, por outro lado, há um desprezo a quem está triste e indignado, que se limita a ser convidado a participar do festão lulista acreditando que a burguesia promete trazer a prosperidade social, o progresso econômico e até o amor da vida de cada pessoa.
A realidade é complexa, o que desmonta qualquer chance de validade plena de textões, desculpas e enunciados que os "isentões" da Internet, agora considerados "democráticos", produzem com insistência para fazer prevalecer suas visões equivocadas de mundo, vendo sempre a realidade como uma força binária e os indivíduos como partes de um só rebanho, para os quais valem as mesmas regras sociais da meritocracia e do status quo.
Por isso é que não dá para comemorarmos, e não é só porque o bolsonarismo ainda está forte. Vivemos uma realidade frágil e a própria frente ampla de Lula já surgiu frágil, como um bloco provisório para garantir a vitória eleitoral do petista e que, agora, já começa a cobrar a conta da "festa da democracia" do hoje presidente eleito. Dias mais difíceis virão, e isso é doloroso de dizer, mas é realista.
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