Vivemos numa sociedade inescrupulosa? É mais vantajoso errar muito e passar panos quentes, se aproveitando do esquecimento coletivo futuro, do que se arrepender e ter autocrítica? Até que ponto vale a pena pessoas se envolverem em atividades inconvenientes para obter vantagem e depois dizer que sentem orgulho de sua trajetória e nenhum arrependimento tiveram da vida?
Escrevo estas linhas porque, nos últimos 30 anos, o que vemos são arrivistas que recebem aplausos, enquanto os arrependidos sofrem o desprezo mais profundo. Mas isso vem de uma longa linhagem, no país do próprio método arrivista do "jeitinho brasileiro", em que o exemplo de um tal "médium da peruca" é glorificado por quase nada, por uma suposta caridade sem provas, mas que é tida como "verdade absoluta".
A trajetória do tal "médium de peruca" de Uberaba não foi de dedicação ao próximo, mas de montar sua "escadaria para o céu" às custas de muita esperteza e oportunismo. Uma "caridade" de fachada, entre entrega de uns poucos donativos que mal davam para abastecer as famílias pobres, além de "cartinhas mediúnicas" fake, serviam de "carteirada" para o reacionário religioso forjar seu pretenso ingresso ao paraíso, se promovendo às custas de pregações de um moralismo medieval e punitivista disfarçado em suaves palavras.
O religioso obteve a impunidade levada às últimas consequências quando um juiz suplente, num surto de "justiça seletiva", em vez de punir o charlatão (hoje exaltado como suposto "espírito de luz"), desqualificou o processo dos herdeiros do injustiçado Humberto de Campos, em 1944, a ponto de sua viúva ter que pagar pelos custos advocatícios. Esta é uma "justiça" que produz os Sérgio Moro da vida.
E como se fala da condenação da religiosa Flordelis, por ter matado o marido Anderson, pastor como ela, sentença que é de 50 anos de prisão, o "médium da peruca" ainda tem a sombra de um sobrinho morto de maneira suspeita em 1961, por um envenenamento que já havia sido previsto em matéria da revista Manchete de 09 de agosto de 1958. Só que, em vez de haver alguma investigação a respeito, fica-se passando pano aqui e ali, pois, para escrever sobre o tal "médium", substitui-se a caneta pela flanela, passando pano no "lápis de Deus".
Sim, porque só no Brasil é que, não bastasse o patético "culto à personalidade" que os chamados "médiuns espíritas", que enganam grandes multidões com sua fala melíflua porém traiçoeira, são glorificados e sofrem a blindagem absoluta a ponto de sua literatura fake, enfeitada por nomes de mortos que nunca escreveram uma vírgula do que lhes é atribuído, ser tratada como "séria" até por um mercado literário que se supõe íntegro, transparente e comprometido com o saber honesto e consistente.
Isso é só um exemplo de como, no nosso país, o arrivista recebe graças e vantagens sociais, errando feio no começo, fazendo coisas aberrantes, e, depois, sem autocrítica nem remorso, muda de atitude mais por puro oportunismo, mudando de postura com a frieza de quem sai do quarto para ir até a cozinha beber água.
Eu, pessoalmente, tenho remorsos na vida. Errei muito na infância e adolescência. Creio ter errado feio em outras vidas. Não darei detalhes porque são coisas muito pessoais, mas me arrependo de muita coisa, sim. Tenho autocrítica em relação a coisas que fiz e foram longe demais, e hoje abro mão de tais posturas e procedimentos. Mudei, mas tenho a humildade de ter me arrependido de erros passados.
Muitos imaginam que se arrepender é ficar se prostrando em praça pública. Não é. Pelo contrário, mudar sem se arrepender, jogar a autocrítica às favas, guardar a sujeira sob o tapete e fingir que sua nova postura sempre foi a postura original, isso sim é deplorável. Mas é justamente esta postura inescrupulosa que é confundida, por muitos, como "coragem" e "imediatismo", como se a pessoa, supostamente, não tivesse tempo de se arrepender.
Em Salvador, Bahia, onde vivi durante 18 anos, fiquei horrorizado, ao saber, em aula na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, da trajetória pavorosa de Mário Kertèsz, filhote da ditadura militar que, como prefeito de Salvador, realizou um medonho esquema de corrupção, deixando obras públicas paradas enquanto pegava verbas públicas para seu patrimônio pessoal.
De repente, Mário Kertèsz montou seu império midiático local, do qual teve que abrir mão de algumas rádios e de ações em TV, além do Jornal da Bahia, contra o qual o hoje "astro-rei da Metrópole FM" foi designado a sabotar, sob ordens do então aliado Antônio Carlos Magalhães. Foi tudo um jogo sujo, mas os fundadores do JBa, que em seu tempo era um jornal progressista, Teixeira Gomes e João Falcão, ambos já falecidos, foram tomados pela Síndrome de Estocolmo e foram passar pano em Kertész, poupando-o de culpa pela decadência do JBa. O mandante pagou a conta e o executor "pendurou" a sua.
Daí que eu, que em duas ocasiões pessoais, fui aconselhado a procurar a Rádio Metrópole para trabalhar como jornalista, não aceitei. Não neguei as sugestões, quando elas me foram dadas em entrevistas, fiquei indiferente e fingi acatar os conselhos, mas nunca fui para a emissora, porque eu tenho princípios e não vale a pena sacrificar a dignidade em nome de uma ascensão social que parece extremamente fácil.
E hoje, vendo que Kertész, um sujeito conservador, virou "dono das esquerdas", se apropriando dos movimentos sociais através da cobertura de sua rádio, e aí me lembro de como Lula, apoiado pelo dublê de radiojornalista, se perdeu no caminho das alianças arrivistas com seus opositores. Sobretudo acolhendo Geraldo Alckmin, que hoje trabalha a transição de governo.
Alckmin nunca pediu desculpas por ter ordenado o massacre de Pinheirinho. Se a decisão oficial foi do então prefeito de São José dos Campos, Eduardo Cury, a destruição do bairro popular (cujo único erro era batizar uma igreja católica de Madre Teresa de Calcutá, outra reaça religiosa) se deu por ordens partidas do então governador de São Paulo, que acatou um pedido de reintegração de posse do empresário e especulador financeiro Naji Nahas, figura de triste lembrança.
Imagine você, numa manhã de domingo, ser acordado de repente, muito cedo, por uma força policial, tendo que arrumar as pressas os pertences para ir embora para não se sabe onde, tendo que suportar, junto com toda a vizinhança, a violência dos policiais que exigiam pressa na desocupação de um bairro já consolidado, com sua vida popular vibrante, com sua memória social e cultural, mas condenado a dar fim a tudo isso de maneira brusca, de maneira caótica, violenta e trágica. Segundo dados extra-oficiais, quatro pessoas teriam morrido durante a desocupação.
Em 2012, eu era um "patinho feio" da mídia de esquerda, com o Mingau de Aço. Não participava do "banquete" dos "blogueiros sujos", porque não passava pano no culturalismo degradante que tinha o "funk" como carro-chefe. Mas eu escrevia ou reproduzia matérias alheias sobre Pinheirinho e me manifestava solidariedade ao povo que, até hoje, sofre as consequências do dramático episódio.
E o que vemos nas esquerdas atuais? Dez anos depois, uma considerável parcela dos "blogueiros sujos", sempre beneficiados com sua visibilidade e prestígio, deixou para lá o caso Pinheirinho, e passaram a digerir o insosso Geraldo Alckmin, que nunca demonstrou uma mudança política e ideológica de verdade, como se fosse um novo queridinho. Assim, de graça, só porque Lula assim o quis.
Alckmin nunca demonstrou autocrítica, nunca demonstrou um desejo de mudança, mais parecendo um "corpo estranho" que, temporariamente, entrou no clima do novo ambiente. Nunca houve um remorso, um pedido de desculpas, uma autocrítica. E todavia Alckmin virou "queridinho das esquerdas", um falso progressista ou um Michel Temer "mais caridoso".
Eu, que ficava feliz em ouvir as longas entrevistas de Lula na prisão, acreditando que ele era uma figura política grandiosa, me decepcionei, com a profundidade de um gigantesco abismo, com as atitudes que o petista tomou de 2021 para cá, já esclarecidas neste blogue. Eu não votei 13 de jeito algum, nem para o Governo de São Paulo. E, no segundo turno, votei nulo.
Fico muito triste quando, no establishment da sociedade brasileira, se dá vantagem a quem é inescrupuloso, que comete erros graves e não se arrepende por eles, mudando mais porque cansou de cometer as velhas atitudes ou está em busca de novas vantagens. E isso vai desde a ex-dançarina de "pagodão" que fez o papel de mulher-objeto mas hoje fala em "empoderamento feminino" sem se arrepender da antiga trajetória, até o ídolo popularesco que, depois de fazer sucesso com discos medíocres, se encana em querer fazer MPB, sem ter um milésimo de talento para isso.
Todos, nessas condições, se sentindo orgulho das antigas trajetórias de sucesso ou, se não for o caso, mantendo silêncio absoluto sobre seus antigos erros. É estarrecedor que, no Brasil pós-Bolsonaro, essa mentalidade resista, até porque a elite do atraso agora joga seu golpismo debaixo do tapete, enquanto ensaia um "humanismo de resultados" através da positividade tóxica do Brasil de Lula 3.0.
Permaneço eu na minha, com a consciência tranquila de assumir os antigos arrependimentos, e da serenidade de não querer subir fácil na vida pelo arrivismo, aproveitando pessoas das quais nunca me identifiquei como trampolins sociais. Infelizmente, dignidade não é o forte desse "esquemão" brasileiro, por se tratar de um dom raro valorizado e respeitado por poucos. Já entre os arrivistas, a máxima é obter vantagens primeiro e a dignidade fica pra depois. Se é que eles realmente vão pensar em dignidade.
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