As esquerdas andam infantilizadas e, por isso, acham agora que a polarização está entre raiva e alegria, entre ódio e amor. A reboque disso tudo tem-se uma simbologia que faz com que ter senso crítico seja erroneamente visto como "golpista", enquanto que "progressista" está relacionado a concordar, aceitar, se resignar.
Imaginemos uma pessoa, por exemplo, que critica o "funk carioca" e está indignada com a glamourização dada a esse gênero:
"O 'funk' é uma enganação! É uma fraude, uma farsa! Faz apologia da miséria humana, trata o povo pobre como se fosse um idiota, é uma música extremamente ruim, malfeita e precária, feita tão somente para fins comerciais e sem valor cultural nem artístico autênticos".
Relato tipicamente bolsonarista? Não. Essa mensagem é mais progressista, por mais que as esquerdas sejam marcadas pela defesa desesperada do "funk", a ponto de transformar pobreza em "carteirada", o que nada tem de progressista, vamos combinar.
E vamos agora para outro lado, um relato dado com linguagem suave, simpática, dócil:
"Temos que aceitar o sofrimento, a desgraça extrema. Que é uma avalanche de desgraças, diante da força de Deus? Aceitar a desgraça, estar confiante e combater o inimigo de si mesmo são receitas para se viver bem, em paz, acreditando que uma força maior protege e ampara".
Relato progressista, libertário? Não. Ele é dos mais conservadores. Mas é dito de maneira suave e usando palavras que parecem dar uma ideia de que seu ideólogo fala em "esperança", o que conforta o ouvinte, que pensa estar ouvindo uma mensagem do mais puro progressismo, hoje definido como "esquerdista" ou "democrático".
Grande engano. Como as esquerdas atuais são de classe média, compostos de gente bem de vida, é fácil haver esses enganos. Uma classe conservadora, uma elite do atraso convertida em "generosa", aderindo ao "humanismo de resultados" que envolve também a direita moderada. E tudo num jogo de conveniências no qual se evita contrariar, tudo tem que estar de acordo, mesmo que seja para botar contradições, omissões e outros problemas debaixo do tapete.
As classes trabalhadoras se decepcionaram com as esquerdas e, portanto, não aderiram a Lula. Apenas uns poucos pobres remediados, que não veem problema em ver Lula se aliando com seus opositores porque é "democracia", aderiram ao petista. Mas o núcleo duro da classe trabalhadora não aderiu à "onda Lula", por ver que ele virou um pelego e sem coragem para desmentir as acusações, muitas indevidas, trazidas pela mídia corporativa.
As esquerdas de classe média, estas sim o núcleo duro do lulismo, vivem fora da realidade, na sua fantasia confortável de seus apartamentos com relativo, porém significativo, requinte, vendo as periferias de longe, sem perceber o que realmente são e o que pensam os pobres. Povo pobre, para a esquerda lulista, é o que aparece na novela das 21 horas da Rede Globo, um povo alegre, feliz, que cumpre seu papel subserviente dentro do racismo estrutural analisado por Jessé Souza.
Por isso, para a maioria dos lulistas, a ideia é não reclamar, não se queixar, não contestar, não questionar. Aceita-se tudo. É a estética da alegria, da positividade tóxica, da obsessão em ser feliz e em acreditar que, calados, permitiremos que o Brasil alcance o Primeiro Mundo, virando uma potência de mentirinha, apenas com cidades arrumadinhas, estímulo ao consumo, preços sob controle, liberdade institucional e pobres relativamente atendidos com migalhas e paliativos.
Os lulistas não querem um Brasil progressista. Querem apenas um Brasil favorável para a classe média, para a elite do atraso convertida em "boazinha" e "humanitária", que prefere brincar de ser europeu em território brasileiro do que descobrir ser brasileiro diante da vizinhança hostil no exterior.
Tudo pode ser um engano ou uma ilusão, mas as esquerdas não querem saber. Elas querem um Brasil conformado, daí que agora definem um "esquerdismo" qualquer nota como "democracia", só para ninguém questionar a enxurrada de conceitos neoliberais que está no programa de governo de Lula e seu projeto de Brasil mediante uma sociedade de acordo com ele.
Os lulistas só querem um "milagre brasileiro" sem DOI-CODI nem AI-5, sem raiva nem intolerância, mas também sem senso crítico nem questionamentos. Deixe-se tudo como está, que o Brasil "melhora do nada", dizem os lulistas.
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