
Durante cerca de duas décadas, fomos bombardeados pelo discurso do tal "combate ao preconceito", cujo repertório intelectual já foi separado no volume Essa Elite Sem Preconceitos (Mas Muito Preconceituosa)..., para o pessoal conhecer pagando menos pelo livro. Essa retórica chorosa, que alternava entre o vitimismo e a arrogância de uma elite de intelectuais "bacanas", criou uma narrativa em que os fenômenos popularescos, em boa parte montados pela ditadura militar, eram a "verdadeira cultura popular".
Vieram declarações de profunda falsidade, mas com um apelo de convencimento perigosamente eficaz: termos como "MPB com P maiúsculo", "cultura das periferias", "expressão cultural do povo pobre", "expressão da dor e dos desejos da população pobre", "a cultura popular sem corantes ou aromatizantes" vieram para convencer a opinião pública de que o caminho da cultura popular era através da bregalização, partindo dos ídolos cafonas do passado e chegando, por intermédio de axézeiros, funqueiros, sambregas, breganejos e forrozeiros-bregas, aos piseiros, arrocheiros e trapeiros de hoje.
Era um apelo que lembrava muito, em pretensa racionalidade e poder de convencimento, à campanha golpista com verniz "intelectual" trazida pelos "institutos" de fachada, IPES e IBAD, na primeira metade da década de 1960. A diferença da antiga estratégia, combinada também com a estratégia do Cabo Anselmo, um direitista infiltrado nas esquerdas, era que a campanha intelectual de 2002 para até pouco tempo atrás usava a trincheira inimiga da esquerda como seu palco principal de proselitismo cultural.
Devemos nos lembrar do caso de Pedro Alexandre Sanches, criatura mais destacada do Projeto Folha da Folha de São Paulo, um projeto que era claramente anti-esquerdista. Mas Sanches foi designado para contaminar a mídia de esquerda com as visões culturais da Folha de São Paulo, tarefa complementada com uma visão política nada criativa, na verdade uma visão que Sanches reproduzia, feito um papagaio emitindo sons, da mídia esquerdista que ele lia para bolar suas estratégias.
O mais assustador é que Sanches, com seu mimetismo de falso pensador de esquerda, estava quase subindo as escadas do Centro de Pesquisas e Mídia Alternativa Barão de Itararé. Chegou a mediar um debate que teve a presença de Luís Nassif e o saudoso Paulo Henrique Amorim. E Sanches surfava nas agendas temáticas de esquerda de tal forma que seus textos eram reproduzidos pelo Blog do Miro, do militante esquerdista Altamiro Borges.
Sanches era o braço "esquerdista" de uma intelectualidade que tentava forjar consenso com a defesa da bregalização e tinha como figura central um sinistro Paulo César de Araújo, que cheirava muito a figurão blindado pela Globo, pela Veja e pelo Estadão mas viveu seus quinze minutos de fama como queridinho de uma esquerda intelectual ávida pelos "brinquedos culturais" da direita, absorvendo um culturalismo conservador de "médiuns", funqueiros, ídolos cafonas, breganejos, mulheres-frutas e tudo o mais que fugisse a estética do raivismo sem deixar de lado o obscurantismo do sistema de valores vigente.
Mas essa choradeira intelectual do "combate ao preconceito" gerou estragos, na medida em que defendia a deterioração da cultura popular, uma forma de sabotar o projeto progressista de Lula, que na época tinha um projeto para o país, diferente de hoje, quando ele mais parece um executor de um programa de governo ditado pela burguesia.
O povo pobre se distraiu com o divertimento popularesco, já que os intelectuais pró-brega inventaram que isso "já era ativismo político-cultural". Os debates de esquerda se esvaziaram e o poder de mobilizar as ruas foi transferido para a direita golpista, o que fez surgir o ciclo golpista que veio da Operação Lava Jato até a tragédia da Covid-19 sob o desgoverno de Jair Bolsonaro.
E aí vemos o quanto Sanches acabou sendo visto - ainda que as esquerdas expressem um silêncio diante da decepção com o "filho da Folha" - tardiamente como força auxiliar de Sérgio Moro, ambos nascidos na conservadora Maringá, na qual a figura progressista da atriz Sônia Braga é apenas exceção à regra.
Até mesmo o "baile funk" de Copacabana, em 17 de abril de 2016, foi como um "cavalo de Troia" dado para as esquerdas, que foram enganadas com a falsa promessa do empresário-DJ Rômulo Costa de "promover um ato de defesa de Dilma Rousseff". As esquerdas morderam a isca e foram dormir tranquilas, sem fazer barulho para os parlamentares que, sem obstáculo à frente, foram votar a abertura do processo de impeachment para tirar a presidenta do poder. No ano seguinte, Rômulo Costa foi comemorar sua vitória fazendo um projeto "social" em parceria com um político golpista.
As esquerdas, no entanto, tiveram muita dificuldade de admitir que foi enganada. Como cornas-mansas, as esquerdas ainda viam nos popularescos, sobretudo os funqueiros, como a "salvação da lavoura" socialista, e a cada crise do governo Michel Temer ou do governo Jair Bolsonaro, o "funk" se anunciava como a "solução para o planeta".
Tudo isso foi um monte de mentiras. O falso esquerdismo do "funk" só serviu para o estilo, assim como outras tendências popularescas, como axé-music, piseiro, breganejo, sofrência, arrocha etc, de arrancar verbas do Ministério da Cultura para as contas pessoais dos seus "artistas". Nada de verbas para aprimorar o talento que, em verdade, não têm, mas verbas para eles comprarem mansões, jatinhos, carros importados e criar um generoso depósito bancário de fazer inveja a um farialimeiro (farialimer).
E aí vemos casos de uma multiplicação de subcelebridades e do surgimento dos primeiros super-ricos entre ídolos popularescos e os empresários diversos que se envolvem no entretenimento, gente que está arrancando grana da população como se fosse um poderoso aspirador de pó, sem medir o valor que está arrecadando para suas fortunas pessoais.
Diante disso, é ilustrativo que Lula, muito brando e inócuo para taxar micharias dos super-ricos tradicionais, deixa que os novos super-ricos surjam e cresçam e apareçam, formando a nata da elite do bom atraso, que amanhecem botando frases de "médiuns" para "alegrar o dia" para depois se entupirem de cigarros e cervejas comprados com o dinheiro que ganharam demais e que falta nas contas de quem realmente quer viver com dignidade e responsabilidade.
Daí que saímos da festa identitária enganados. Os popularescos em geral, mas em especial os funqueiros, nos enganaram com esse discurso de "cultura da periferia" ou "expressão do povo pobre" e se enriqueceram às custas do apoio da opinião publica. Agora os "humildes" ídolos da canção popularesca realizam o sonho e a ganância de ganharem dinheiro demais, enquanto o verdadeiro povo pobre, invisível em novelas e comédias, já começa a calcular quais das inúmeras contas terão que pagar, porque a grana lhes está desaparecendo dramaticamente.
Comentários
Postar um comentário