O cordial etnocentrismo da intelectualidade "bacana" descrito no meu livro Esses Intelectuais Pertinentes... sempre falou do mito da "pobreza linda", como forma de um racismo e elitismo velados e disfarçados pela retórica do "combate ao preconceito".
Tudo era lindo: viver em casas precárias e inseguras situadas nos morros, trabalhar na prostituição ou no comércio clandestino, levando dura de clientes, cafetões e da polícia, e, na velhice, o alcoolismo era sinônimo de consolo emocional.
As favelas eram consideradas uma "nação", e os negros, índios, mestiços e brancos pobres eram "pessoas felizes e ingênuas" que "se viravam" para transformar subúrbios, roças e sertões em "paraísos de prosperidade e autossuficiência".
Tudo isso sob a trilha sonora da música brega-popularesca, os chamados "sucessos do povão".
Durante muito tempo isso foi vendido como "qualidade de vida ideal" para o povo pobre, fazendo com que a classe média influente nas redes sociais dormisse tranquila, assim como seus seguidores das classes um pouco menos pobres.
Era a ilusão de que ser pobre era, por si, uma "qualidade progressista" e muito desse discurso elitista foi vendido nas mídias de esquerda como "ideal de vida", sob a embalagem do "fim do preconceito".
Como o Brasil virou um grande misto de Instagram e WhatsApp, Esses Intelectuais Pertinentes... no momento não está sendo muito vendido, e causa horror a muitos que intelectuais pró-brega sejam desqualificados e ídolos popularescos sejam capa de uma obra que questiona seu universo musical.
Mas, num país menos ingênuo, o livro seria um dos mais vendidos e ninguém fingiria ler um livro que não leram e fazer resenha com base no achismo.
Lá fora se questionam as coisas. Não tem o mito da "pobreza linda" que o discurso de "admiráveis pensadores da cultura popular" tanto transmitiram, fazendo muita gente (que boicota meu livro) sorrir de orelha a orelha, sonhando com um povo pobre domesticado e infantilizado.
Pois esse preconceituoso "combate ao preconceito" queria apenas defender a pobreza em detrimento dos pobres, a prostituição em detrimento das prostitutas, o comércio clandestino em detrimento dos seus vendedores, o alcoolismo em detrimento dos alcoólatras.
Isso não era qualidade de vida. E dava pena esses intelectuais usarem a mídia de esquerda como palanque para suas pregações.
Sonhavam com um povo pobre imbecilizado, diziam que isso era "fim do preconceito" e, com certo jogo de cintura, já estavam a poucos degraus do Centro de Estudos e Mídia Alternativa Barão de Itararé.
Embora seu discurso fosse geral, onde cabiam defesas tanto dos negros do comercialismo do "funk carioca" até as moças louras do "sertanejo", ou melhor, do "feminejo", havia um certo etnocentrismo, um certo "racismo científico", problema descrito por Jessé Souza em seus livros.
Eu não enfatizei esse problema do "racismo científico", no meu referido livro, mas descrevi a visão etnocêntrica da pobreza simbólica na cultura popularesca, a glamourização da pobreza como retórica do "combate ao preconceito".
E, enquanto se fala da "pobreza linda", da "nação favela" e outras maravilhas que reduzem as periferias brasileiras em Disneylândias suburbanas ou rurais, nos EUA um fato muito macabro de sua história voltou à tona através do seriado Watchmen, que relembrou o massacre racial de Tulsa, em 1921.
O episódio fez 100 anos em 31 de maio último, e se trata de um dos mais chocantes e revoltantes incidentes envolvendo conflitos raciais nos Estados Unidos.
Foi em Tulsa, no Estado de Oklahoma - que, por ironia, tem como sigla OK - , mais precisamente no próspero distrito negro de Greenwood.
Neste distrito, havia negros que conquistaram posições sociais economicamente prósperas, típicas de brancos bem sucedidos. Havia até mesmo um cirurgião, A. C. Jackson, considerado na época o melhor cirurgião dos EUA. Ele esteve entre os assassinados do massacre.
Os brancos não gostavam de ver essa prosperidade, realizada décadas depois da Guerra Civil Americana com a emenda da Constituição estadunidense que aboliu oficialmente o trabalho escravo, em 1865.
Invejosos, os brancos acusavam os negros de roubarem seus empregos e seu padrão de vida, e havia um clima de animosidade sutil semelhante ao que a direita brasileira, durante os governos de Lula e Dilma Rousseff, sentiu diante do povo pobre que cursava universidades e viajava de avião.
Lembremos que, nessa época, o grupo de extrema-direita Klu Klux Klan estava em ascensão, pregando a violência racial de brancos contra negros.
O incidente que fez os brancos reagirem e promoverem a carnificina em Greenwood foi uma suposta acusação de estupro que uma operadora de elevador do edifício Drexel, Sarah Page, de 17 anos, fez contra o sapateiro Dick Rowland, de 19 anos.
O jovem negro havia sido preso e, com o anúncio de sua prisão, manifestantes brancos revoltados estiveram à frente do tribunal onde Rowland havia sido levado.
Espalhou-se então um rumor de que Rowland havia sido linchado, o que fez com que alguns negros se dirigissem ao local armados. Houve um tiroteio e dez brancos e dois negros foram mortos.
Há indícios de que o tiroteio começou porque um branco tentou desarmar um negro armado e um tiro foi disparado para o alto, dando início à explosão de violência.
Isso causou uma explosão de revolta dos dois lados. Milhares de brancos invadiram Greenwood e quebravam e incendiavam lojas, além de saquearem produtos. Eles também mataram homens, mulheres e crianças negros, além de deixarem 10 mil pessoas desabrigadas.
Um prejuízo de cerca de US$ 1,5 milhão em imóveis destruídos e US$ 750 mil em bens pessoais afetados foi o saldo do massacre que destruiu 191 casas comerciais, uma escola de ensino médio (high school), várias igrejas, o único hospital do distrito e 1256 residências.
Quanto aos mortos, o número variava do inicial índice de 77 vítimas fatais, nove brancos e 68 negros, até 300 negros (e um número não creditado de brancos). Pela dimensão do conflito, estima-se que o número tenha sido grande, sendo os mortos em ampla maioria de negros.
Vários mortos foram jogados em valas comuns, enquanto supostos relatos de pessoas feridas e presas acusadas de envolvimento no confronto não eram comprovados.
O episódio foi tão traumatizante que foi omitido de ser narrado nos ensinos de História dos EUA durante décadas, tanto pelos brancos envergonhados com o incidente, quanto pelos negros que queriam esquecer a dor profunda daquele acontecimento extremamente chocante.
Depois da tragédia, Sarah Page havia retirado a queixa contra Rowland.
E isso se deu quando um distrito negro de uma cidade dos EUA realmente conquistou uma qualidade de vida digna e próspera.
Muito diferente do mito da "Disneylândia suburbana-rural" da "maravilhosa periferia" do discurso dos intelectuais pró-brega e seu preconceituoso "combate ao preconceito".
Em um dos casos, há o sorridente racismo estrutural dos "sem preconceito" do qual a "ruptura do apartheid cultural" se deu sempre pesando na pior maneira no lado do povo pobre.
Ou seja, em vez dos pobres terem uma cultura melhor, eram as elites que passavam a usufruir - até com muito mais gosto do que o "povão" - a bregalização cultural, que divertia as classes abastadas ao mostrar uma versão caricata do povo pobre.
Noutro caso, era o racismo explícito e escancarado de brancos que não aguentavam ver os negros tendo qualidade de vida, e aproveitando as circunstâncias para destruir um distrito próspero.
Greenwood, após o massacre, foi até reconstruído, mas somou à sua rotina a uma silenciosa memória trágica que os sobreviventes não queriam transmitir para os mais jovens, durante décadas.
Hoje há investigações para identificar os mortos, através de ossadas colhidas em diversos locais onde ocorreu o conflito.
E isso nos faz pensar do verdadeiro preconceito tanto dos invejosos brancos supremacistas dos EUA quanto da festiva intelectualidade pró-brega que trata o povo pobre como um bando de animais domésticos.
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