Em sua excursão na Europa, Lula fez relembrar levemente o tempo em que esbanjava grandeza, quando, mesmo de maneira limitada, realizou alguns progressos como presidente do Brasil.
Eram caminhos incipientes ainda, mas havia alguma perspectiva de melhorias para os brasileiros, mesmo quando Lula era mais moderado do que João Goulart, na ironia deste ter sido um fazendeiro de gado e i petista, um torneiro mecânico.
Afinal, Jango chegou a cometer ousadias, como dobrar o salário mínimo quando era ministro de Getúlio Vargas, em 1953, e estava começando a tirar do papel a reforma agrária e o limite da remessa de lucros de empresas estrangeiras quando foi deposto em 1964.
E havia um amplo debate sobre cultura popular, seja na imprensa, seja nos CPCs da UNE, seja de parte de intelectuais como José Ramos Tinhorão.
Discutia-se até as marchinhas de Carnaval ou mesmo a decadência do samba nos desfiles deste referido feriado.
Hoje se criticarmos coisas piores, como a música popularesca em geral, somos rotulados de "preconceituosos", enquanto quem deveria debater e questionar acaba passando pano.
Um sujeito como João Roberto Kelly, famoso e talentoso compositor de marchinhas dos anos 1960, era contestado na época. Hoje, canastrões como Alexandre Pires e Chitãozinho & Xororó recebem generosas e até eufóricas passagens de pano de jornalistas e artistas que se definem como sérios.
Indo para os dias atuais, Lula andou decepcionando por sua falta de firmeza e pela supervalorização de pequenas vitórias obtidas no Supremo Tribunal Federal e através dos institutos de pesquisa eleitoral.
O Brasil, sob o golpe de 2016, sob Temer e Bolsonaro, foi devastado e vive uma situação frágil, mas Lula parece viver no Brasil-Instagram e sonhar que ainda vive em 2002.
O que me fez decepcionar com Lula foi que ele, em vez de dizer "Vamos realizar um governo difícil, não será hora de atingirmos a prosperidade", ele falou "Vamos fazer o Brasil ser feliz de novo e realizar o melhor governo de toda a história do nosso país, e viveremos a melhor de todas as fases".
Falta realismo em Lula. E é isso que me fez perder o voto. Um Lula sem firmeza, fazendo alianças sem critério e justamente com aqueles que contribuíram para o golpe de 2016 e que festejaram a prisão do petista.
Fico triste em ver Lula falando como se o Brasil estivesse bem, nosso país está moribundo, vulnerável e devastado, e ele fala como se tudo isso fosse uma marolinha.
A crise de 2008, num Brasil razoavelmente administrado pelo presidente Lula, poderia ter sido, sim, uma marolinha.
Mas o Brasil sucateado nos últimos cinco anos é quase um Haiti maquiado como se fosse uma pretensa Suécia. Mas os estragos sociais, consequentes da Operação Lava Jato que começou todo esse desastre, foram devastadores.
Trabalhadores que eram engenheiros na Petrobras e nas empreiteiras como OAS e Odebrecht acabaram virando motoristas de aplicativos, trabalhando com Uber ou com iFood, entre outras marcas.
A população de rua aumentou drasticamente. A cultura viu perder acervos importantes no Museu Nacional e na Cinemateca. Floresta Amazônica e Pantanal perderam boa parte de suas áreas devido aos incêndios criminosos.
A necropolítica deu sequência a feminicídios, extermínio de indígenas, camponeses, negros pobres, moradores de rua, comunidade LBGTQIA+ e outros entes sociais estratégicos para o projeto fascista de redução da população brasileira.
Com tudo isso, vamos acreditar nessa lorota de que o Brasil vai bem? Ele só vai bem dentro da positividade tóxica que contagia das redes sociais a certas religiões "espiritualizadas" que se definem como pretensos (e oportunistas) contrapontos ao mau humor neopentecostal.
E aí Lula parece viver num mundo cor-de-rosa, e faz discursos grandiosos no exterior, como na sede do Parlamento Europeu, em Bruxelas, Bélgica, e no Instituto Sciences Pro, em Paris.
Em ambos os discursos, Lula enfatizou o combate a fome e uma política motivada pelo diálogo e não pela violência.
Tudo bem. São ideias consistentes e bem intencionadas, e aqui vai uma amostra, de um trecho falado no discurso no Parlamento Europeu, ontem:
"Neste planeta que compartilhamos, o futuro da humanidade precisa ser construído com diálogo e não autoritarismo, com paz e não com violência; com mais livros e não mais armas".
E um trecho do discurso realizado hoje, no Instituto Sciences Pro, em Paris:
"Temos muito a contribuir em temas como o combate à pobreza e à fome; o diálogo político; a construção da paz; o equilíbrio geopolítico do mundo; a democratização das relações financeiras e comerciais entre países e no enfrentamento da emergência climática. Temos muito a contribuir para a segurança alimentar do planeta, a economia global, a cultura, a ciência e tecnologia".
Ele até admite, na teoria, que o Brasil sofreu retrocessos. Mas pra que sonhar demais em vez de agir de maneira realista? Quatro anos não vão dar para o Brasil reverter a situação dramática em que vive.
Até para alcançar os parâmetros medíocres do Brasil do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso vai ser uma grande trabalheira.
Imagine então o esforço que se dará para que o governo Lula pudesse ser, de fato, o melhor de todos os três governos presidenciais!
E Lula se aliando a golpistas de 2016, paquerando a possibilidade de ter, como vice, Geraldo Alckmin, um neoliberal ligado à seita medieval Opus Dei, e que ordenou a destruição da comunidade popular Pinheirinho, em São José dos Campos, em 2012, para atender a donos de uma fábrica abandonada.
Como é que Lula poderá ter intato o seu projeto político?
O que eu temo é que Lula vá fazer apenas maquiagens: Bolsa Família, cotas raciais, algum projeto benéfico tipo Minha Casa, Minha Vida, e outros paliativos, enquanto na Economia serão implantados medidas que não ofendem os interesses do neoliberalismo.
A ênfase do combate à fome é correta, mas de que forma se dará o projeto desenvolvimentista, com a Petrobras à beira da morte e a Eletrobras e os Correios à beira da extinção, como estatais, programada para o próximo ano?
E na cultura, será que vamos repetir a palhaçada dos intelectuais pró-brega e seu ridículo "combate ao preconceito" que só reforçou preconceitos ainda piores? Quem não lê Esses Intelectuais Pertinentes... está perdendo muitas das questões envolvidas.
O nosso Brasil vai continuar fraturado e vai fingir que atingiu o esplendor com medidas paliativas, com os "brinquedos culturais" que as esquerdas receberam da direita, que tratam o Brasil como se fosse uma novela das nove da Rede Globo?
É fácil Lula exibir uma aparente grandeza nos discursos diante de autoridades na Europa.
Mas difícil é um Lula mais sonhador do que realista subestimar a realidade difícil de hoje - não basta admitir sua existência, é preciso sentir o drama existente - , achar que tudo está bem, que o Brasil em quatro anos entrará no Primeiro Mundo.
Ir do inferno temeroso-bolsonarista de 2016-2021 para o "paraíso" lulista será difícil.
Em 2003, ainda dava para Lula fazer um governo de transição, ainda sob o peso de ser acusado de "copiar" o programa de governo do antecessor FHC.
Mas em 2023, o que haverá? Lula vai fazer governo de transição com o programa econômico de Paulo Guedes? E de mãos dadas com aqueles que, cinco anos antes, torceram para ver ele preso pelo resto da vida?
Por isso é muito fácil fazer um discurso e ser aplaudido, falar bonito e expor grandes ideias. O problema está na prática.
Sobra oratória firme e bonita em Lula, mas faltou a coragem dele lutar de verdade para derrubar Bolsonaro e de buscar reconquistar seus espaços por conta própria.
Infelizmente, o que vemos é Lula e as esquerdas resignados com as brechas que a direita moderada lhes deu, sem conceder um espaço digno e autônomo de atuação. Ver as esquerdas brincando de protagonismo no colo da direita liberal é constrangedor.
As esquerdas estão fracas e Lula não tem a força que seus adeptos atribuem a ele.
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