AS FAVELAS, TIDAS COMO "PARAÍSOS" PELO DISCURSO DO "COMBATE AO PRECONCEITO", SÃO NA VERDADE AMBIENTES DEGRADADOS E UM SÉRIO PROBLEMA DE EXCLUSÃO HABITACIONAL.
Com base nas minhas leituras dos livros do sociólogo Jessé Souza e nas inferências que eu faço nos meus livros e artigos, nota-se que a elite do atraso, agora no modo "bondoso" dessa elite que não quer mais ser conhecida com este nome, sustentou nos últimos anos dois mitos que mascaram a realidade sombria dos nossos dias.
Jessé Souza, em várias de suas obras, fala do mito da "corrupção só estatal", que alimentou toda uma campanha golpista que derrubou Dilma Rousseff e, mais tarde, levou Jair Bolsonaro ao poder. É a ideia de que somente os detentores do poder público, do Estado, cometem atos desonestos, enquanto a chamada iniciativa privada é vista erroneamente como um "paraíso de transparência e eficiência".
É esse mito que criminalizou Lula e o colocou na prisão, dois anos após a queda de Dilma Rousseff. Lula foi proibido de concorrer às eleições de 2018. Hoje, Lula teve que fazer concessões para ser solto, recuperar os direitos políticos e traçar um caminho cheio de inconvenientes para chegar à Presidência da República.
Durante esse hiato entre abril de 2016 e o final de 2022, a teoria do Estado Mínimo, "enxuto e eficaz", acompanhada do encolhimento funcional das empresas privadas, com as pequenas falindo ou chegando perto disso e as grandes demitindo centenas de pessoas, se baseou na perversidade da precarização do trabalho, do cancelamento dos direitos trabalhistas e de uma reforma trabalhista que priorizava os interesses dos patrões.
Esse mito da "corrupção estatal" impulsionou esse quadro de precarização e decadência, tão drástico que mesmo o empresariado teve que ceder. Cobrar custos advocatícios, por exemplo, imposição feita ao desempregado que processar seu patrão por demissão injusta, foi uma medida cancelada, pois essa extorsão jurídica não teria efeito justo ao cobrar dinheiro de quem não tem e fazia com que a Justiça abrisse mão de sua impessoalidade, se posicionando abertamente no lado dos patrões.
É claro que a situação não melhorou, o neoliberalismo continua forte e o golpismo de 2016 ainda mantém o seu legado. Mas os partidários do "combate à corrupção" e do mito do "patrimonialismo", a "corrupção exclusivamente estatal", acabaram decaindo como formadores de opinião e fabricantes de aparente consenso. Tornaram-se a "banda podre" da elite do atraso, que em 2022 encerrou seu protagonismo conquistado pelas revoltas reacionárias de 2013-2016.
Mas devemos lembrar de outro mito, o "culturalismo sem cultura", a interpretação bruta, ao pé da letra, das ideias de Jessé Souza, como se seu conceito se tornasse estático, paralisado no âmbito formal das abordagens do sociólogo.
Se nos prendermos apenas às abordagens de Jessé Souza, específicas do âmbito da Sociologia, nos limitaremos a entender o "culturalismo vira-lata" apenas como um processo que reúne jornalismo político, propaganda governamental fascista e educação familiar, sendo a palavra "cultura", na prática, um eufemismo para pedagogia social, que na verdade é apenas um aspecto pequeno do que se chama de "aculturação".
Portanto, surge o mito, não mencionado por Jessé, mas por mim analisado, que é o mito do "culturalismo sem cultura". Ou seja, um "culturalismo" mais voltado a aspectos noticiosos, políticos e propagandísticos. Um "culturalismo" sem os aspectos culturais de um viralatismo "agradável", que a elite do atraso enrustida define como "as melhores coisas da vida", da bregalização cultural ao obscurantismo religioso não-raivoso, passando pelo fanatismo futebolístico e etílico.
A campanha do "combate ao preconceito" dos intelectuais pró-brega - ver meu livro Esses Intelectuais Pertinentes, via Amazon ou Clube de Autores - era blindada, juntamente com os "brinquedos culturais" que o imaginário esquerdista colonizado pela direita neoliberal fazia o Brasil parecer uma versão real da novela das 21 horas da Rede Globo, com seus funqueiros, "médiuns espíritas", mulheres-objetos e craques de futebol que parecem terem surgido de algum conto de fadas infantil.
São favelas tidas como "paraísos arquitetônicos", comércio clandestino e pirataria tidos como "guerrilhas libertárias", prostitutas como "símbolos de empoderamento feminino", alcoolismo como "consolador" de dramas pessoais e até meninas menores de idade, que mal acabaram de descartar suas bonecas, sendo erotizadas e sexualizadas pelo entretenimento da "periferia", sob aplausos da intelectualidade "sem preconceitos" que vê nisso uma "intuitiva educação sexual da juventude pobre".
Tudo isso mascara um culturalismo vira-lata com uma retórica por anos apoiada por setores influentes de nossa sociedade. Sim, durante anos essa retórica da glamourização da pobreza e da gourmetização da degradação sociocultural (consentida devido a uma versão deturpada do "outro" defendida por intelectuais tidos como "admiráveis") era considerada "uma visão positiva, objetiva e realista da realidade do povo pobre", que o imaginário "sem preconceitos" fazia crer que as favelas viviam num clima de "carnaval permanente", uma suposta rebelião identitária e sem conscientização política real.
Tudo isso é um culturalismo vira-lata, associado à precarização artístico-cultural e à apreciação paternalista do povo pobre, sob um ponto de vista da classe média "iluminada", que é a elite do atraso enrustida, que vê a pobreza alheia com um olhar perversamente voyeurista, mas dissimulado o suficiente para se passar por uma visão "generosa" e "altruísta", através de um mal-disfarçado paternalismo.
É essa visão, ancorada pelo tal "combate ao preconceito" da intelectualidade "bacana", que põe a sujeira do culturalismo vira-lata (ou viralatismo cultural, tanto faz) debaixo do tapete, só mostrando o "culturalismo sem cultura", porque o verdadeiro culturalismo vira-lata, mesmo mostrando o lado precário da abordagem do povo pobre, seja pelo entretenimento do "funk", seja pelo assistencialismo oportunista e fajuto dos "médiuns espíritas", quando o pobre é visto como um "animal doméstico", esse culturalismo é visto pelas elites como "coisas boas da vida".
O fanatismo pelo futebol, marcado por incidentes tóxicos cada vez mais constantes, mostrando a curtição magnata dos craques esportivos ou escândalos como as acusações de que o técnico Cuca teria cometido estupro, sem falar que esse fanatismo chega a motivar assédio moral no trabalho em empresas e instituições no Grande Rio, é também outro culturalismo vira-lata jogado debaixo do tapete, assim como o desmedido fanatismo pela bebida alcoólica, bem maior do que o fanatismo já existente em outros países.
E já falamos do obscurantimo religioso dos "médiuns espíritas", que enganaram as esquerdas com a suavidade de seus discursos, que em tese não lembram a hidrofobia escancarada dos neopentecostais. A obsessão pela fé religiosa, praticada não dentro das igrejas - como, pelo menos, deveria ocorrer para quem não se desapega da religião - , mas fora delas, a ponto do feed do Instagram de certas pessoas misturar fotos de belas mulheres sensuais com memes com frases e imagens de feiosos "médiuns" ou de padres e pastores pseudo-filosoficos.
Tudo isso é, também, culturalismo vira-lata, porque claramente explora os baixos instintos humanos, do misticismo mórbido à submissão etílica, que faz com que pessoas saudáveis desperdicem um domingo de descanso passando doze horas bebendo um monte de cerveja e vendo transmissões de futebol e suas mesas redondas, preso na mesmice sem proveito de tais entretenimentos e sacrificando sua saúde com pesadas doses de cerveja bombardeando o estômago.
Mas tem gente que joga fora um fim de semana saudável e, em vez de renovar as energias, mergulha (ou se afoga) no entretenimento tóxico da diversão popularesca, do "funk", do piseiro, do arrocha, da axé-music ou do brega em geral, ou do misticismo desesperado dos cultos neopentecostais ou "espíritas", desses que não se contentam com a delimitação de seu espaço de oração. Ou do consumo de álcool, por longas horas, enquanto a televisão ou o rádio passam mais uma jornada tediosa de futebol.
São coisas do mais explicito viralatismo cultural, pois envolvem toda uma degradação social, toda uma falta de proveito para a vida, mantendo hábitos caducos e valores caquéticos ue fazem o Brasil um antro de atraso, essencialmente preso a paradigmas de vida que só faziam sentido nos tempos da ditadura militar.
A aparente ausência de raiva simbólica não faz todo esse imaginário de bregalização, obscurantismo, fanatismo futebolístico (que faz os torcedores serem verdadeiros perdedores, pois sua maior razão na vida é a vitória de um time de futebol que nada traz de proveitoso em suas vidas) e outros hábitos mórbidos estejam excluídos de serem considerados culturalismo vira-lata. Só as elites (de)formadoras de opinião é que não a definem como viralatismo, mas como "as melhores coisas da vida". Só sendo vira-lata para pensar dessa forma.
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