RITA LEE EM 1968 E NOS ÚLTIMOS MESES DE VIDA.
Perdemos Rita Lee, a grande mestra do Rock Brasil, uma figura ímpar que encerrou sua digna trajetória de mais de 55 anos. Foi uma carreira tão dinâmica e riquíssima que é muito difícil comentá-la de forma abrangente, com tantas coisas que ela havia feito em sua vida.
Rita Lee foi um nome que, inicialmente, personificou com perfeição o psicodelismo brasileiro, através da banda Mutantes, formada com os irmãos Dias Baptista, Arnaldo, o primeiro marido, e Sérgio, o cunhado. Os Mutantes foram uma banda paulistana que assimilou bem o projeto tropicalista dos baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil e acompanharam cada um dos cantores, respectivamente em "É Proibido Proibir" e "Domingo no Parque", em 1968. "Bat Macumba", de Gil, também contou com a participação dos Mutantes.
Os Mutantes esbanjavam informação musical consistente e nem sempre conhecida pelo roqueiro médio brasileiro até hoje. Rita usava o mesmo penteado da Nico nos tempos de Velvet Underground, adaptava para o contexto brasileiro e as diferenças pessoais a função de cantora-compositora-musicista psicodélica exercida por Grace Slick no Jefferson Airplane.
Além disso, os Mutantes também trouxeram referências que iam muito além das influências da segunda fase dos Beatles. A canção "2001" (1968), que Rita compôs com o cantor baiano Tom Zé, é uma resposta brasileira à música "Mr. Spaceman" (1966), dos Byrds, na combinação de uma temática espacial com arranjo de música caipira. A música dos Byrds tinha roupagem de música country, e dos Mutantes, de música caipira, incluindo o tom paródico de Rita e Arnaldo como se fossem um casal caipira desses que formaram duplas humorísticas no rádio e na TV nos anos 1950 e 1960.
A façanha maior dos Mutantes foi criar um rock psicodélico bem brasileiro e com eventuais doses de senso de humor que, curiosamente, passaram a fazer a cabeça dos jovens alternativos estadunidenses nos anos 1990. Até Kurt Cobain e Beck Hansen declararam serem fãs da banda.
Depois que os Mutantes acabaram devido à diferença criativa entre Rita e os demais parceiros - que estavam se interessando por rock progressivo e hard rock - e o fim do casamento dela com Arnaldo Baptista, ela foi seguir uma carreira-solo já ensaiada em Build Up, de 1970, aparentemente um trabalho paralelo mas, diz a lenda, era um álbum dos Mutantes não-creditado.
Com a banda Tutti-Frutti acompanhando Rita Lee, ela assimilou as influências dos Rolling Stones da fase 1969-1974, embora a banda acompanhante tenha inserido também acordes instrumentais inspirados em bandas como Gentle Giant, seminal banda de rock progressivo muito popular entre os roqueiros brasileiros da época.
É desta fase a canção "Ovelha Negra", uma contundente canção sobre a insubordinação juvenil, que, ao lado da música de Belchior, "Como Nossos Pais", era uma crítica à acomodação da juventude pós-1968, que não conseguiu realizar as tão sonhadas revoluções sociais, principalmente num Brasil mergulhado no pesadelo do AI-5. "Ovelha Negra" era um hino de motivação para a pessoa "assumir e sumir", tirando as neuroses da cabeça e "pondo o resto no lugar".
Em seguida, Rita Lee compôs a música "Arrombou a Festa", em 1977, com o mesmo Paulo Coelho hoje decepcionado com o governo Lula. A letra era um diagnóstico do cenário da música brasileira da época, com críticas à mesmice dos sucessos mainstream e alguns da canção brega (com menções a Benito di Paula e Mauro Celso, do sucesso "Farofafá"). A música teve outra versão, "Arrombou a Festa 2", com outra letra, voltada aos sucessos de 1979, incluindo uma menção paródica à estrangeira "Le Freak", do grupo Chic.
A fase de maior sucesso de Rita Lee foi com o casamento com o guitarrista Roberto de Carvalho, que durou até o fim da vida, gerando três filhos, Beto Lee, Joao e Antônio. Beto Lee, mais tarde, foi parceiro dos pais e depois seguiu carreira solo. Na virada dos anos 1970 para os 1980, Rita Lee assumiu uma fase pop sem o menor ressentimento, criando um pop adulto à brasileira que, com o marido, criou sucessos marcantes como "Mania de Você", "Doce Vampiro", "Lança Perfume", "Baila Comigo", "Desculpe o Auê", "Saude" e tantos e tantos outros que hoje rolam nas rádios e canais digirais de MPB.
Rita Lee e seu marido se apresentaram também no primeiro Rock In Rio, de 1985, tendo sido uma das atrações marcantes do festival. Mas, dez anos antes, a Rita Lee da fase Tutti-Frutti já havia sido uma das atrações do lendário Hollywood Rock 1975, numa época em que rock era coisa de roqueiro.
Em 1986, Rita Lee e o escritor e dramaturgo Antônio Bivar (autor do ótimo volume O Que é Punk? da série Primeiros Passos da Editora Brasiliense e falecido em 2020) comandaram o Rádio Amador da rádio paulista 89 FM, na única fase em que a dita "rádio rock" da Faria Lima era quase uma rádio legal, entre 1985 e 1987, fase superestimada pela imprensa musical paulista até hoje. O Rádio Amador era apenas um dos programas específicos que passaram a ancorar uma fase do radialismo rock em que a programação normal ficava com o hit-parade e a nata do rock ficava com os programas específicos.
Nos últimos anos, Rita Lee e Roberto de Carvalho seguiram compondo e tocando juntos. Um dos sucessos dessa época é "Todas as Mulheres do Mundo", com referência ao icônico filme de 1967 com Leila Diniz no elenco. Teve também parcerias com o casal Fernanda Takai e John Ulhoa, fortemente influenciados pelos Mutantes. Rita também musicou a letra de Arnaldo Jabor, "Amor e Sexo", gravada em 2003.
Descendente de famílias oriundas do Alabama, EUA, de tradição escravocrata e derrotada pela Guerra de Secessão (American Civil War, que durou de 1861 a 1865), que se instalaram no interior de São Paulo para fundar cidades como Americana e Santa Bárbara D'Oeste, Rita Lee foi a "ovelha negra da família" capaz de ser amiga e eventual parceira do negro baiano Gilberto Gil, com quem ela compartilhou um álbum ao vivo, Refestança, de 1977.
Nos últimos meses, Rita Lee sofreu um câncer no pulmão que, embora tivesse sido curado, seu tratamento foi muito difícil e fragilizou gravemente o organismo da cantora. Roberto de Carvalho, com um amor inigualável, se dedicou muito a ela e divulgava postagens com a esposa na sua rotina caseira e na sua tentativa de recuperar sua saúde. Na manhã de 09 de maio, ela não resistiu às dores físicas e faleceu em casa, em São Paulo, sua terra natal.
Rita já havia feito uma "profecia", título de um capítulo do livro Rita Lee: Uma Autobiografia, de 2016, a respeito de seu falecimento, no qual ela manifestava seu habitual senso de humor:
"Quando eu morrer, posso imaginar as palavras de carinho de quem me detesta. Algumas rádios tocarão minhas músicas sem cobrar jabá, colegas dirão que farei falta no mundo da música, quem sabe até deem meu nome para uma rua sem saída. Os fãs, esses sinceros, empunharão capas dos meus discos e entoarão ‘Ovelha negra’, as TVs já devem ter na manga um resumo da minha trajetória para exibir no telejornal do dia e uma notinha do obituário de algumas revistas há de sair. Nas redes sociais, alguns dirão: ‘Ué, pensei que a véia já tivesse morrido, kkk’. Nenhum político se atreverá a comparecer ao meu velório, uma vez que nunca compareci ao palanque de nenhum deles e me levantaria do caixão para vaiá-los. Enquanto isso, estarei eu de alma presente no céu tocando minha autoharp e cantando para Deus: ‘Thank you Lord, finally sedated’. Epitáfio: ela nunca foi um bom exemplo, mas era gente boa.".
Rita foi mais um nome do mainstream da MPB a falecer, o que é preocupante diante da falta de renovação da MPB autêntica num cenário cultural devastador que prevalece no Brasil. A ex-mutante, que teve, em seu tempo, o diferencial de ser compositora e musicista, num meio em que cantoras interpretavam composições alheias e majoritariamente masculinas, foi um grande diferencial na sua trajetória artística e sua falta deixará uma grande lacuna para nossa música.
São tempos difíceis. E já era triste ver Rita Lee, no final da vida, fragilizada e envelhecida, se despedindo de nós ainda em vida, quando o país ainda sofreu o luto de perder Erasmo Carlos e Gal Costa, meses atrás, no ano passado. E, agora que o já debilitado Rock Brasil não tem mais a sua rainha - por ironia, Rita interpretou o Rei do Rock Brasil, Raul Seixas, num curta-metragem - , a situação da rebeldia musical brasileira se encontra insustentável.
Ver que agora "vanguarda" na música são os novos funqueiros com batidas em som de lata de ervilha, e "relíquias vintage" são porcarias do nível de É O Tchan, Michael Sullivan e Chitãozinho & Xororó, a perda de cada nome da música brasileira de qualidade é de arrepiar. "O que foi que aconteceu com a Música Popular Brasileira?", parafraseando a hoje saudosa cantora em "Arrombando a Festa".
Resta a esperança de nomes como Rita Lee servirem, mesmo postumamente, como bússolas para futuras gerações com melhores condições que as atuais para entender os verdadeiros valores do legado musical brasileiro, embora, infelizmente, isso demore muito a aparecer, ante a mediocridade reinante no nosso Brasil tão idiotizado.
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