Devemos desconfiar das coisas, com base no famoso ditado popular: "é bom demais para ser verdade". Muitas ilusões são vendidas como se fossem o realismo mais realista, mentiras são divulgadas com tanta frequência e sob a esperança de serem reconhecidas como "verdades absolutas e indiscutíveis", com narrativas que produzem sentido de forma suficiente para fazer qualquer um dormir tranquilo achando que essas lorotas são "fatos verídicos e autênticos".
Jogar uma cidade como Uberaba como a "quarta cidade mais barata do Brasil" é uma mentira de fazer Pinóquio ficar preocupado. Como uma cidade que é um reduto dos fazendeiros de gado zebu, espécie bovina mais cara do mundo, que movimenta um mercado que deveria ser um dos mais caros e não o contrário, insistir em se vender como "cidade-tostão", enganando turistas que, se não se prevenirem, vão fazer turismo na cidade com pouco dinheiro no bolso e terminar na pindaíba, sem grana para voltar?
A desconfiança é recomendável. Lembremos que a atribuição da cidade mineira como "cidade barata" foi feita sem um mínimo de fundamento nem justificativa lógica. Na prática, existem umas trezentas cidades no Nordeste, no Norte e até nos interiores de São Paulo, Paraná ou mesmo Minas Gerais, que são bem mais baratas do que Uberaba, que tem passagem de ônibus com tarifa mais cara até do que Rio de Janeiro. Lembremos que passagem de ônibus é o gasto base para quem quer fazer turismo em uma cidade.
Há truques que fazem com que falsas atribuições sejam produzidas. Como o mito da "cidade-mulher" de Salvador, para atrair mão-de-obra masculina através de um mal-disfarçado turismo sexual legitimado institucionalmente. É um meio de mexer com as carências de homens interioranos que, explorados pelo entusiasmo, se deslocam para os falsos eldorados que lhes prometem o paraíso, na esperança de uma vida mais próspera.
No caso de Uberaba, o que se armou foi um período de black friday de algumas semanas, numa época em que ocorrem pesquisas feitas por institutos relacionados à cidadania, à economia e à qualidade de vida. Dirigentes lojistas, combinados com os poderosos fazendeiros do Triângulo Mineiro, realizaram uma onda temporária de queda de preços, tudo para ficar bem na foto e nos registros dos pesquisadores que se instalavam para colher os dados.
O objetivo, além de estimular o turismo religioso - um famoso charlatão, pioneiro na literatura fake, é considerado a maior personalidade de Uberaba - , é de atrair mão-de-obra vinda de Goiás, Minas Gerais e do interior de São Paulo, plantando uma mentira baseada numa ocasião temporária "eternizada" pelos relatórios. Sempre os relatórios. E o que era uma situação forjada de maneira provisória passa a ser vista como uma "realidade permanente".
Alguém, em sã consciência, acreditaria mesmo que uma cidade ligada ao comércio da carne bovina mais cara do mundo seria considerada uma das cidades mais baratas do Brasil? Mas como as redes sociais são monopolizadas por narrativas vindas da burguesia heterodoxa, a elite do bom atraso, quem acha que aluguel a R$ 2 mil e almoço a R$ 30 baratos vai espalhar essa mentira e ainda defendê-la como "verdade absoluta" com unhas e dentes.
Em nome do turismo, verdadeiras mentiras são exploradas para que se possa atrair, com rapidez e em grande quantidade, uma grande mão-de-obra que, depois, irá ser utilizada principalmente para trabalhos pesados, comércio e serviços, mesmo quando há o risco dessa mão-de-obra ser excessiva e o excedente for condenado à desgraça da miséria e do desemprego. E vamos combinar que desgraça é o que o Espiritismo brasileiro mais defende para os deserdados da sorte.
HOMENS NEGROS E POBRES - Sem direito a sequer ser número estatístico em Salvador.
FALTAM HOMENS... BONITOS
Assim como um período de liquidações e promoções de preços baixos são um artifício para Uberaba se vender sob a falsa atribuição de "quarta cidade mais barata do Brasil", visando produzir sensacionalismo para atrair mão-de-obra mineira, paulista e goiana, Salvador tentou vender o atributo de "cidade-mulher" para o mesmo fim, explorando a imagem ficcional da Gabriela do livro de Jorge Amado.
Conforme divulgado no livro 1961 - Que as Armas Não Falem, de Paulo Markun e Duda Hamilton, o censo de 1960 mostrava que, na Bahia, a cidade de Salvador - muitas vezes denominada, com a preposição masculina, "Cidade DO Salvador" - registrava um número maior de homens do que de mulheres na sua população. E olha que o êxodo rural do interior baiano não atingiu a intensidade das décadas posteriores, embora o Estado da Bahia, simbolicamente, sempre se reduziu à mística de sua capital.
Pois foi a ditadura militar ser instaurada e o político udenista baiano Antônio Carlos Magalhães se ascender na sua carreira para a capital baiana, visando promover uma imagem lúdica de "cidade tropical" - até pegando carona no Tropicalismo de um grupo de cantores baianos - , explorar uma imagem "sensual" lançando uma mentira que agrada gregos e troianos, machistas e feministas: o mito da "cidade-mulher", com a suposta maioria feminina na população.
A ideia agrada tanto os machistas, por conta da fartura de "carne para comer", quanto para as feministas, por conta de um corporativismo de gênero, e a narrativa da "cidade-mulher" se encaixava num cenário de orla marítima, com suas praias, areias e coqueiros.
Vivi em Salvador durante 18 anos e não vi essa maioria feminina. Pelo contrário, até pelos ônibus lotados que eu via, eram homens que não acacabam mais. Mas dizer essa realidade não pode, porque a regra brasileira é que a fantasia agradável prevaleça sobre a realidade e seja sustentada por um considerável número de pessoas. Mentira compartilhada por centenas de pessoas vira "verdade indiscutível".
E como se deu essa armação da "cidade-mulher"? Simples. O truque era atribuir para os homens que, negros e pobres, não nasceram em Salvador, a sua cidade de origem como se ainda fosse a residência desses indivíduos. Um gigantesco contingente de homens se desloca do interior da Bahia para a capital na vã esperança de buscar emprego e prosperidade.
Uma "Bahia de homens", Bahia com H maiúsculo e masculino, sempre se deslocou para a capital, única possibilidade de alguma vida diferente. E vamos combinar que o desejo do homem brasileiro é viver perto da praia, é muito mentirosa a visão de que o homem brasileiro se contenta em viver cercado de cachorros e galinhas numa precária casa de bairro.
Mas as fantasias da "cidade-mulher" são cultivadas de tal maneira que houve até filme brasileiro que apostou na visão fantasiosa de meninas que, ainda no começo da adolescência, ainda brincavam de boneca mas, não se sabe como, foram viajar de ônibus sozinhas para viver na capital.
Há, também, o cruel aspecto do racismo. Homens negros e pobres do interior da Bahia que não têm direito sequer de serem números estatísticos do Censo, a não ser quando são presos depois que cometem assaltos para sobreviver.
Mas isso se agrava quando a cultura boêmia vigente na Bahia, com o Pelourinho, lembrança do trágico cenário de castigo dos escravos, transformado em reduto turístico, paisagem de consumo e área de bares para o público beber cerveja à vontade, cria um eufemismo para jogar os homens "feios, sujos e miseráveis" debaixo do tapete.
Esse eufemismo se baseia numa elipse muito conhecida, dada por mulheres boêmias, consumidoras vorazes de cigarros e cervejas, a respeito da ausência de homens nas boates onde elas frequentam, afinal muitos desses homens precisam dormir mais cedo para trabalhar, mesmo na forma degradante do subemprego, que exige uma carga horária intensa e, não raro, longe do local da moradia.
Essa elipse consiste no bordão "Está faltando homem em Salvador". Na verdade, não está "faltando homem", está faltando "homem bonito", sobretudo pelo estereótipo que, ultimamente, é representado pelo ator Cauã Reymond, atual paradigma do galã brasileiro.
Isso significa que o atributo de "homem", combinando a condição de espécie humana com a do gênero masculino, só é permitido se o indivíduo for atraente. Mesmo biologicamente ligados a tais condições naturais, os homens negros e pobres de Salvador, que sofrem por não serem números estatísticos exceto para os presídios da capital baiana, não podem sequer "ser homens", o que representa um racismo do mais alto grau de perversidade.
Afinal, o homem do interior baiano não pode ser gente. É tratado como se fosse um "corpo estranho", um "animal desprezível", e é essa situação degradante que transforma áreas como o Subúrbio Ferroviário, as regiões de Valéria, Cajazeiras, Pau da Lima, Tancredo Neves, Pirajá, Liberdade e outras áreas pobres se tornem violentas, pois essa violência é o grito desesperado de negros revoltados por serem tratados feito "bichos", pois nem o Censo reconhece a presença deles na capital baiana, tratados como "forasteiros" que ainda vivem no interior, este reduzido a "cidades-fantasmas".
E aí vemos o quanto Uberaba e Salvador armam mentiras sensacionalistas para atrair mão-de-obra e incrementar o turismo, criando factoides fantásticos visando tornar rápida e intensa essa atração, fazendo com que o dinheiro das autoridades aumente de maneira vertiginosa, favorecendo os "coronéis" regionais que lucram com toda essa politicagem.
Tenhamos sempre em mente o ditado "é bom demais para ser verdade", antes que seja traído pela realidade chocante. E aí não adianta fazer textão nem "tribunal de Internet" para defender suas convicções sonhadoras. A realidade dura sempre vence, em algum momento, a fantasia agradável e confortante.
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