Embora oficialmente fora de moda, o termo "pelego" demonstra as contradições do presidente Lula, que, no imaginário dos seus seguidores, realiza o suposto milagre de ampliar seu leque de apoio e, em tese, manter seus princípios esquerdistas intatos na sua essência.
Não sejamos ingênuos. Se Lula investe na frente ampla e sinaliza aproximar-se do Centrão na reforma ministerial em cogitação, não há almoço grátis. Não podemos considerar que o projeto progressista, já moderadíssimo nos mandatos anteriores, fosse permanecer intato no atual mandato, logo quando o presidente brasileiro se esbalda nas alianças mais heterogêneas possíveis, visando uma vitória mais folgada na campanha presidencial de 2026.
Para quem não sabe, e não custa repetir aqui, o termo "pelego" é um jargão do movimento sindical dado àquele líder que, representando os trabalhadores, se corrompe quando, durante as negociações trabalhistas, acaba atendendo mais aos interesses dos patrões. Era muito comum um líder sindical ter em mãos as reivindicações dos colegas de uma categoria de trabalhadores e, na volta, ter obtido apenas uma pequena parte do que foi pedido.
Não podemos nos esquecer disso. É chato falar do peleguismo de Lula, para um público que acha o termo "pelego" fora de moda, e fica apegado a uma imagem fetichista do político que, de repente, passou a exercer fascínio numa elite ao mesmo tempo ilustrada, abastada mas suficientemente enrustida. Uma elite falsa o bastante para não se assumir como uma burguesia influente, como se ser uma classe "legal" não combinasse com a condição social burguesa dos atuais apoiadores do presidente brasileiro.
Devemos considerar que contradição não é equilíbrio. Só uma abordagem ao mesmo tempo fragmentada e algorítmica, que aposta num binarismo primário, é que faz as pessoas irem dormir tranquilas porque fulano é uma coisa num momento e é outra coisa em outro momento, como se ser contraditório fosse o mesmo que ser versátil. Só que não.
Lula teve dois primeiros mandatos bons. Nada excepcionais, mas neles o presidente mostrava serviço e fez realizações admiráveis. Hoje, porém, quando o presidente brasileiro faz o terceiro mandato, tudo o que se vê são simulacros, marketing, um jogo de faz-de-conta que não pode ser desmascarado, pois Lula, agora aparentando um Papai Noel político, têm que manter a imagem sonhadora de um líder de contos de fadas, para uma esquerda identitária e infantilizada.
Lula colocou um neoliberal para ser seu vice-presidente. Buscou apoio de empresários e políticos da direita moderada para se viabilizar na campanha presidencial de 2022. Apostou na frente ampla para ganhar nas urnas e usa o termo "democracia" como álibi para adotar atitudes que fujam do ideário das esquerdas trabalhistas tradicionais.
Com isso, Lula também não realizou uma ruptura real com o legado maldoso do governo Michel Temer. Sabe-se que Temer desenvolveu o caminho e o asfalto para o sucessor Jair Bolsonaro, mas este, na verdade um mero operador das desventuras golpistas pós-2016, acabou sendo atribuído como único culpado do processo, enquanto a "nata do golpe", tentando sobreviver ao naufrágio pós-Bolsonaro, hoje se envolve "democraticamente" com Lula.
E Lula faz ataques ensaiados à Faria Lima, que soam até fortes no aparato da palavra, mas são muito mais fracos nos efeitos práticos das ações. De que adianta Lula bradar contra Roberto Campos Neto, o ganancioso presidente do Banco Central e neto do homônimo ex-ministro da ditadura militar, se o presidente brasileiro não decidiu pela demissão do tecnocrata nem fez uma ação sequer para baixar os juros da dívida pública, que deveriam estar abaixo de dez reais há um bom tempo.
De que adianta Lula vociferar contra a privatização da Eletrobras, querendo brincar de ser Leonel Brizola ao prometer, de mentirinha, reverter a condição da empresa? O próprio Geraldo Alckmin, o freio neoliberal para o que restou dos antigos impulsos esquerdistas de Lula, já afirmou que o governo não irá reestatizar empresas. O que privatizou, está privatizado, e ponto final.
Lula ficou "em cima do muro" quanto o assunto é o fim da escala 6x1 do mercado de trabalho, se limitando a pedir um "debate equilibrado" entre trabalhadores e empresários. Como um "pelego", Lula evita desagradar o empresariado, que hoje o sustenta politicamente, mas no caso do fim da escala 6x1, proposto pela deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), for aprovado, Lula desejará se apropriar da causa, se autoproclamando "responsável" pela proposta.
As falsas tretas de Lula com a Faria Lima, hoje sua maior aliada dentro de uma perspectiva da "frente ampla demais" - que tende a se ampliar ainda (de)mais na próxima campanha presidencial - , mais parecem aquelas tretas fabricadas entre os fãs das rainhas do rádio Emilinha Borba e Marlene, há mais e 70 anos. Divergências combinadas, tipo Beatles e Rolling Stones, feitas mais para entreter o público.
Com Lula prestes a aprovar a queda do ritmo de crescimento do salário mínimo - que vergonhosamente aumentou apenas R$ 90 nos últimos dois anos - , sabe-se que o suposto conflito de Lula com o "mercado" não é mais do que uma conversa para boi dormir, algo que só as elites que monopolizam as narrativas nas redes sociais levam a sério.
Eu, tendo que passar pelas ruas e ver o cotidiano vivo onde quer que eu esteja, seja Niterói, Salvador ou São Paulo, seja Belo Horizonte, Nova Iguaçu ou Rio de Janeiro, só estou ouvindo trabalhadores falarem mal do Lula. No meu serviço de telemarketing, eu já ouvi duas vezes gente desempregada ou com problemas financeiros graves desabafando raivosamente contra Lula, coisa que não se pode publicar, porque as redes sociais julgam "impossível" um trabalhador repudiar o presidente brasileiro.
Mas, paciência. Ninguém é prestigiado que não possa cair em descrédito se cometer algum deslize sério. E, do contrário que os lulistas falam, Lula, com seus impulsos, errou vergonhosamente. Quando o Brasil precisava iniciar a reconstrução, Lula preferiu viajar, enfatizando sem necessidade uma política externa, se expondo de maneira pretensiosa a ponto de intervir inutilmente em conflitos estrangeiros. Parecia que Lula estava mais preocupado em reconstruir a Ucrânia do que o Brasil.
Lula não é um fetiche que possa exigir que seus atos equivocados sejam "ressignificados" para que possam ser conhecidos como "acertos estratégicos". O presidente brasileiro decepcionou profundamente no terceiro mandato, a ponto de mudar até o seu público de apoio, substituindo os antigos pobres da vida real pelo "Clube de Assinantes VIP" de uma classe média abastada, que finge fazer treta com o presidente para depois jantar com ele comemorando os louros. Muito "democrático", né?
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