Em mais um apelo de promoção pelo coitadismo, o "funk" mais uma vez posa de vítima de "censura", desta vez com um texto com um claro tom de defesa de causas identitárias. O tema do artigo de Eduardo Moura, também acompanhado de um vídeo, é a "censura artística" que está sendo feita contra o "funk", promovida principalmente pelo Estado. A matéria conta com vários depoimentos de diversos agentes sociais. A matéria foi publicada na página da Folha de São Paulo.
A desculpa é a mesma, e força a barra usando o racismo e o classismo como critérios para a rejeição do "funk", e chega a falar das temáticas de apologia à violência e à sexualização - que alimentam o repertório dos chamados "proibidões" - como "expressões do eu-lírico", como se aquilo fosse "poesia".
O texto apela para o clichê da descontextualização, sempre comparando o samba ao "funk", que sempre se aproveita da antiga perseguição sofrida pelos sambistas para puxar a brasa para sua sardinha. Esse clichê é manifesto pelo professor Guilherme Varela, da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (FaCom/UFBA), e integrante do MOBILE (Movimento Brasileiro Integrado pela Liberdade de Expressão Artística):
"Um exemplo clássico é o samba, afirma o professor. Se, por um lado, o Estado usava o ritmo como signo de ufanismo e homogeneização nacional, 'havia uma lei da vadiagem que perseguia os sambistas, além de uma ação policial muito forte para tentar dissolver os núcleos 'vagabundos' do samba', ele diz.
Se no início do século 20, os sambistas eram repreendidos sob acusações de 'vadiagem', hoje o alvo principal é o funk. Praticamente desde que surgiu, o ritmo carregou consigo estigmas negativos. O ano era 1992, e as praias da zona sul do Rio de Janeiro eram palco dos chamados 'arrastões' - grupos de jovens das periferias da cidade protagonizavam assaltos em massa nas praias, tirando o sossego dos mais endinheirados.
Geralmente, eram legiões rivais de comunidades diferentes da cidade, que marcavam de se enfrentar na areia - os episódios eram tanto uma prática criminosa quanto uma batalha por sua presença ali. A polícia intervinha e, no dia seguinte, palavras como "pânico", "desesperança" e "violência" estampavam as páginas dos jornais brasileiros.
'Começou a noticiar ali nos anos 1990 que os culpados pelos arrastões eram os funkeiros', diz Juliana Bragança, historiadora e autora do livro 'Preso na Gaiola: A Criminalização do Funk Carioca nas Páginas do Jornal do Brasil'".
Sim, há o lado da repressão policial contra os pobres e os negros, o que é fato e é extremamente lamentável. E há, também, uma campanha organizada de setores escancaradamente conservadores contra os pobres e os negros, o que é uma realidade tristemente indiscutível.
No entanto, o "funk" é que tenta um vínculo com esse problema social, e o ritmo é visto pela narrativa presente no artigo da Folha de São Paulo como um "genuíno movimento artístico-cultural", suposta expressão do "povo negro e pobre" e da "comunidade queer" (LGBTQIA+).
A gourmetização do "funk" esconde aspectos como o próprio fato de que a burguesia intelectual respaldada pela Folha de São Paulo e pelas esquerdas médias quer também promover uma homogeneização social do povo pobre e uma domesticação comportamental, pois o "funk" simboliza o "pobre de novela", o "pobre" que a burguesia ilustrada, que é a nossa intelligentzia que defende a precarização da cultura popular, tanto adora.
O "funk" não tem representatividade no pobre autêntico, no pobre que estuda para ser alguém na vida, no pobre que quer algo mais do que rebolar e cantar de forma precária, no pobre que quer dormir cedo porque precisa acordar de madrugada para pegar o trem ou o ônibus superlotados para ir a um local de trabalho distante de sua casa.
O pobre da vida real não tem a ver com o "funk". O pobre que demora para sair da favela porque percorre o seu labirinto de acessos precários só para ir ao ponto de ônibus ou à estação de trem. O pobre que não acha a pobreza linda, que musicalmente adora tocar um violão, uma gaita ou até um violino, mas que não pode expressar seus talentos no "funk" porque o DJ não deixa.
O "funk" apela para tanto vitimismo e se vende como "arte", mas ele nunca passou de um ritmo musical tão comercial quanto os desvarios economicistas de Roberto Campos Neto e seu icônico avô. O discurso repetitivo e choroso dos funqueiros é tal que a impressão que se tem é que a violência policial tornou-se propagandista acidental do ritmo.
Agora forçar a barra atribuindo a rejeição ao "funk" ao racismo e ao classismo é uma atitude abominável, que só faz com que os jovens das favelas sejam reféns do ritmo, forçados a aceitá-lo como único meio de ascensão social, o que deixa subentendido uma verdade que nada tem a ver com a narrativa "socializante" que o gênero recebe há mais de 20 anos pela própria equipe editorial da Folha.
Atualmente, o "funk" e sua franquia adquirida pela versão paulista do gênero, o "funk ostentação", o trap, revelam que seus ídolos se tornam podres de ricos e o papo de negritude é conversa para boi dormir. A precarização musical simbolizada pelo "funk" e seu rigor estético inflexível medido por baixo mostram que o vitimismo do gênero e a gourmetização intelectual que tenta promover o ritmo como pretensa vanguarda não passam de um discurso hipócrita e, isso sim, classista.
Afinal, o "funk" simboliza um padrão de "pobreza" aceitável pela burguesia ilustrada, uma elite que fica se achando só porque consegue obter um diploma dentro de um meio acadêmico marcado pela rejeição ao senso crítico. Eu mesmo já estudei na FaCom/UFBA e vi o quanto a UFBA vetava o senso crítico nos cursos de pós-graduação, preferindo um padrão cosmético de produção de teses herdado de um modelo acrítico lançado em 1974 a partir de Fernando Henrique Cardoso e companhia.
A própria Folha de São Paulo construiu todo esse discurso e uma nova leva de intelectuais tenta promover o vitimismo do "funk", tentando fazer comover a opinião pública e fazer encher de dinheiro os DJs e empresários do gênero, que se tornam cada vez mais ricos por conta desse pretenso discurso que usam a "pobreza" e a "negritude" como carteiradas. Essa elite também atua contra os pobres e negros, vistos de acordo com o juízo de valor paternalista dessa burguesia ilustrada de intelectuais "bacanas".
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