A revista Veja, hoje vivendo uma fase mais "comportada" depois de tanta hidrofobia nos anos 2010, mesmo assim não deixa de aprontar das suas. Uma matéria, que até soa bem intencionada, sobre as cinco canções brasileiras que "dão caneladas nas regras da gramática", creditando-as como "sucessos da MPB", incluiu sem necessidade um sucesso da música brega, por sinal de um cantor bolsonarista.
A matéria foi publicada na coluna O Som e a Fúria, da revista Veja, em 03 de dezembro de 2024. A matéria cita canções de Raul Seixas e, também, erros propositais da canção "Inútil", do Ultraje a Rigor, e "Tiro ao Álvaro", de Adoniran Barbosa (consagrada pela voz de Elis Regina), respectivamente para expressar a "indigência" do brasileiro comum e a coloquialidade do paulista do bairro do Bixiga.
A música incluída é "Não Quero Falar com Ela", do ídolo brega Amado Batista, cuja única ligação, digamos, com o Ultraje a Rigor é que, hoje, tanto o cantor cafona quanto Roger, o líder do Ultraje, apoiam o pavoroso ex-presidente Bolsonaro.
O erro descrito na matéria de Veja é até desnecessário, "Entre eu e ela tá tudo acabado", quando o correto, no português formal coloquial, é "Entre mim e ela tá tudo acabado". Mas esse erro de português é tão banal que nem deveria ser lembrado, aliás, muita gente até pergunta que é essa tal de "Não Quero Falar Com Ela".
Creditar o brega como "MPB" é uma tese que serve a uma corrente de intelectuais que veem a sigla da Música Popular Brasileira pelo sentido lato (lato sensu). Mas, historicamente, a música brega sempre foi anti-MPB, na medida em que a sigla MPB surgiu como um movimento de oposição cultural contra a ditadura militar, em 1966.
O brega foi um dos símbolos do ufanismo torto que a ditadura patrocinou na época do "milagre brasileiro", e seu crescimento se deu na Era Geisel, paralelo ao crescimento de uma elite intelectual que nasceu no colo de Fernando Henrique Cardoso e que, a partir dos anos 1990, abriu caminho para uma intelectualidade "bacana" que passou a gourmetizar a música brega-popularesca sob a desculpa do "combate ao preconceito" (ver Essa Elite Sem Preconceitos (Mas Muito Preconceituosa)...).
Muita gente se sente ofendida e dá chiliques quando se diz que brega não é MPB. Ficam paranoicas e usam como desculpa sempre aquele pretexto do "grande sucesso popular". Expressões como "MPB com P maiúsculo", "verdadeira MPB" e outros rótulos pretensiosos são imediatamente mencionados, e quanto textão choroso e raivoso foi feito por essa gente que odeia ser contrariada.
O que esse pessoal não sabe é que a música brega é uma música comercial. Com toda a afetividade que um crítico musical possa ter com um sucesso brega-popularesco - ou seja, a grande linhagem que vai dos primeiros ídolos cafonas (bregas) a uma infinidade de ídolos popularescos contemporâneos, indo de Waldick Soriano a MC Poze do Rodo, passando por chitões, chicletões, tchans, calipsos, calcinhas e pabblos da vida - , a música brega-popularesca sempre teve propósitos comerciais.
Mesmo quando tenta fingir de "não-comercial", falando da "vaia do público" ou da "rejeição da crítica musical", a música brega-popularesca não deixa de ser comercial, pois aposta naquele discurso do "Papai Noel de loja", que sempre tem que dar a falsa impressão de que aquele velhinho natalino que o idioma inglês chama de "santa" veio do Polo Norte, quando se vê que ele é nada mais do que um funcionário fantasiado e, muitas vezes, nem tão idoso assim.
Por isso soa problemático incluir o brega na MPB, tanto pela dicotomia histórica da MPB/MDB e do brega/ARENA dos anos de chumbo, quanto pelo caráter comercial que o brega-popularesco tem correndo nas suas veias. Ridicularizam o termo "popular" da sigla MPB, mas a MPB autêntica só não foi popular porque a mídia coronelista não deixou e durante décadas as trilhas de novela eram a única porta estreita de acesso dos emepebistas ao grande público.
Mas vamos combinar que o brega-popularesco só é "popular" pelo mau hábito que o grande público acabou contraindo e que, recentemente, contaminou a classe média e até os movimentos identitários. Daí a constrangedora atitude dos jovens identitaristas, mesmo seguindo o figurino "hippie pós-moderno" dos Coachella de hoje, cantar aos berros comovidos um sucesso cafona como "Evidências", dos canastrões Chitãozinho & Xororó. É coisa que não caberia numa Nação Woodstock de 1969, não é mesmo?
Lembremos que a música brega-popularesca é uma caricatura do que o povo deixou de legado musical. Pastiches de samba, de modinha, de baião, de afoxé, condimentados e trabalhados com aromatizantes, acidulantes, totalmente pasteurizados para o consumo fácil e imediato do grande público.
Dá pena ver gente desperdiçando monografias gourmetizando os fenômenos brega-popularescos e inventando etnografia onde não existe, sem saber que o brega-popularesco trata o povo pobre de forma caricatural e, não raro, bastante pejorativa. Um Francis Hime respeita muito mais o samba dos morros do que o É O Tchan.
Voltando ao texto sobre as "caneladas", uma canelada: o trecho de "Metamorfose Ambulante" foi citado no texto com o uso errado de vírgula: "Prefiro ser, essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo". A mania de separar sujeito (com ou sem verbo) com predicado por vírgula é um cacoete de muitas pessoas, baseada no fato de que, quando falamos, separamos sujeito e predicado pela respiração. Mas isso é errado e sua leitura soa incômoda.
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