Pular para o conteúdo principal

70 ANOS DE ELIS REGINA E A CRISE DA MPB

ELIS REGINA, NO COMEÇO DE CARREIRA, EM 1961.

Hoje Elis Regina teria feito 70 anos de idade. Morta por overdose de cocaína cerca de dois meses antes de completar 37 anos, a cantora gaúcha sobreviveu simbolicamente ao seu falecimento, sendo prestigiada e admirada até hoje, mesmo por pessoas que nunca a puderam vê-la viva e atuante na música.

No entanto, celebrar o aniversário de nascimento de Elis Regina no contexto da música brasileira atual, completamente estagnado por homenagens sucessivas e nenhum artista que unisse talento e visibilidade, é bastante melancólico, não só pelo fato dela ter tido morte prematura.

E nem é pela ausência dela em si que a MPB padece, até porque, bem ou mal, sua filha caçula, Maria Rita Mariano (do casamento de Elis com César Camargo Mariano), assume as influências da mãe e segue carreira aproveitando as lições dela e até gravando o repertório que vários compositores ofereceram à cantora gaúcha e sob sua voz se tornaram clássicos.

A MPB padece por causa de uma mentalidade mesquinha que, a partir dos anos 1990, a mídia e o mercado passou a ter da MPB autêntica, herança das deturpações trazidas na década anterior e que fizeram a antes vigorosa MPB dos anos 1960 ficar entediante, tola e inócua nos anos 1980.

Essa mentalidade fez as pessoas se acostumarem mal com o clima de pompa, de luxo e de couvert artístico que viciou a MPB, hoje um amontoado de referências confusas, insipidamente misturadas num modelo que mais parece um pop adulto qualquer cantado em português.

MPB virou trilha sonora de restaurantes e transas de motel, e pouco importa se são grandes talentos ou mesmo as canastrices neo-bregas (sobretudo Michael Sullivan, Alexandre Pires, Ivete Sangalo e Chitãozinho & Xororó) adotadas bastardamente por certas correntes emepebistas mais promíscuas e condescendentes. Se tiver romantismo e luxo, tudo bem.

Na sua derradeira entrevista, no programa Jogo da Verdade da TV Cultura, em 05 de janeiro de 1982 - duas semanas exatas antes de morrer - , Elis já se preocupava com as fórmulas que eram impostas pelas gravadoras para a MPB, mesmo quando tentam criar clones de talentos como a própria cantora. Aliás, clone não é original, não tem o mesmo talento.

Muitas questões que Elis trazia ao apresentador Salomão Esper e os conhecidos jornalistas Maurício Kubrusly e Zuza Homem de Mello, relacionadas às imposições da indústria fonográfica, são muito atuais. O tratamento da música como um negócio, a criação de fórmulas e mitos, de modismos e modelos, já era reclamado por Elis naquela época em que as gravadoras castraram a MPB.

Hoje o pessoal acha tudo maravilhoso, vai uma comunidade de MPB colocar um vídeo de uma música de Sullivan & Massadas no Facebook e o pessoal bovinamente aceita, sem queixumes. É o pessoal que deve ter parado de raciocinar, e que deveriam ir ao médico para fazer exames para ver se eles não adquiriram o mal de Alzheimer prematuramente.

Isso porque as pessoas não percebem a máquina de fazer dinheiro que, primeiro nas mãos de Lincoln Olivetti e Robson Jorge, pasteurizaram a MPB, e depois, nas mãos de Michael Sullivan e Paulo Massadas, transformou o brega em luxo e gala. É triste ver pessoas com menos de 35 anos, na maior memória curta, achando que Michael Sullivan é gênio, sem saber metade de seu passado traiçoeiro.

É horrível. O pessoal pensa que a "verdadeira MPB" é aquela que funde clima de gala e apelo popular, muita pompa de um lado e plateias lotadas de outro, com letrinha de amor e música qualquer nota. Claro, o pessoal que ouve esse engodo não está aí para ouvir MPB e nem para conversar, mas só veio aqui para beber, e muito, para adormecer o cérebro.

Elis Regina não havia cedido às regras de mercado, mas até ela era pressionada, como cantar uma versão a contragosto de "Garota de Ipanema". Muitas pessoas reclamavam que a MPB de 1980-1982 não era mais aquela, todo mundo "bebia" "Gente", "Palco", "Brincar de Viver", e o mini samba-enredo "O Que É o Que É?", de Gonzaguinha, tão surrada que ninguém aguenta mais ouvir.

A MPB por um lado se banalizou num pequeno repertório jogado como se fossem "verdades absolutas" musicais, desculpa para que o cancioneiro emepebista se congele nesses clássicos e nada mais. Francis Fukuyama entrou na MPB, via Pedro Alexandre Sanches, para dizer que a MPB vibrante dos anos 1960 acabou e quem quiser que faça brega ou que dependa das trilhas sonoras de novela para ter algum lugar sob o Sol.

Se Elis Regina tivesse começado hoje, ela penaria. Teria que colocar uma música numa trilha sonora de novela da 19 horas da Rede Globo. Caso contrário, teria que permanecer no circuito universitário, e olhe lá, porque as universidades hoje promovem as terríveis "choppadas" em que as mais pesadas drogas musicais são despejadas nos ouvidos da rapaziada embriagada.

Nem as viradas culturais, que agora se dedicam a ressuscitar múmias "injustiçadas" do brega de 20, 30 e 40 anos atrás, iriam aceitar Elis Regina. E, se ela fosse gaúcha e não baiana, teria que compactuar com o mercadão da axé-music, que pode estar decaindo mas ainda governa o mercado musical baiano com mãos de ferro.

Alguns sucessos de Elis Regina ficaram banalizados, principalmente a canção de Belchior, "Como Nossos Pais", que foi depredada por interpretações de cantoras de axé-music e duplas "sertanejas" que cantavam a letra da música sem saber o que ela dizia, e estragavam a aura da mesma com sua canastrice musical irritante.

Isso porque os ídolos brega-popularescos, principalmente os neo-bregas dos anos 1990, também embarcaram, como parasitas, na onda de homenagens intermináveis à MPB, até porque os neo-bregas viram nisso uma oportunidade deles pegarem carona nos clássicos da MPB e dar um tempo nos tenebrosos repertórios autorais que costumam fazer.

A MPB anda estéril ultimamente e sua crise atinge um grau máximo. Só que, diferente dos anos 1980, quando o Rock Brasil vinha como uma alternativa viável, não se vê luz no fim do túnel, porque essa "cultura rock" que aí está hoje, salvo raras exceções (que nem aparecem nas rádios de happy rock, a carioca Rádio Cidade e a paulista 89 FM), não passa do mesmo pastelão sonoro dos anos 1990.

Com isso, resta aqui dizer que o dia de hoje é um estímulo para reflexão. Não dá para a História da MPB encerrar em Elis Regina enquanto entregamos o futuro das vozes femininas na música brasileira para funqueiras pseudo-ativistas e cantoras de axé-music que acham que podem gravar de tudo. Depender dessas canastronas para o futuro feminino na MPB é constrangedor, para não dizer deplorável.

Elis Regina deveria ser o ponto de partida, e não a linha de chegada, de um contexto de debates e propostas para renovar e enriquecer a cultura musical brasileira, que nada tem a ver com o esgoto sonoro presente nas rádios "populares" que a intelectualidade se esqueceu de que são controladas por barões midiáticos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

BRASIL TÓXICO

O Brasil vive um momento tóxico, em que uma elite relativamente flexível, a elite do bom atraso - na verdade, a mesma elite do atraso ressignificada para o contexto "democrático" atual - , se acha dona de tudo, seja do mundo, da verdade, do povo pobre, do bom senso, do futuro, da espécie humana e até do dinheiro público para financiar seus trabalhos e liberar suas granas pessoais para a diversão. Controlando as narrativas que têm que ser aceitas como a "verdade indiscutível", pouco importando os fatos e a realidade, essa elite brasileira que se acha "a espécie humana por excelência", a "classe social mais legal do planeta", se diz "defensora da liberdade e do humanismo" mas age como se fosse radicalmente contra isso. Embora essa elite, hoje, se acha "tão democrática" que pretende reeleger Lula, de preferência, por dez vezes seguidas, pouco importando as restrições previstas pela Constituição Federal, sob o pretexto de que some

A GAFE MUNDIAL DE GUILHERME FIÚZA

Há praticamente dez anos morreu Bussunda, um dos mais talentosos humoristas do país. Mas seu biógrafo, Guilherme Fiúza, passou a atrair as gargalhadas que antes eram dadas ao falecido membro do Casseta & Planeta. Fiúza é membro-fundador do Instituto Millenium, junto com Pedro Bial, Rodrigo Constantino, Gustavo Franco e companhia. Gustavo Franco, com sua pinta de falso nerd (a turma do "cervejão-ão-ão" iria adorar), é uma espécie de "padrinho" de Guilherme Fiúza. O valente Fiúza foi namorado da socialite Narcisa Tamborindeguy, que foi mulher de um empresário do grupo Gerdau, Caco Gerdau Johannpeter. Não por acaso, o grupo Gerdau patrocina o Instituto Millenium. Guilherme Fiúza escreveu um texto na sua coluna da revista Época em que lançou uma tese debiloide. A de que o New York Times é um jornal patrocinado pelo PT. Nossa, que imaginação possuem os reaças da nossa mídia, que põem seus cérebros a serviço de seus umbigos! Imagine, um jornal bas

POR QUE A GERAÇÃO NASCIDA NOS ANOS 1950 NO BRASIL É CONSIDERADA "PERDIDA"?

CRIANÇA NASCIDA NOS ANOS 1950 SE INTROMETENDO NA CONVERSA DOS PAIS. Lendo as notícias acerca do casal Bianca Rinaldi e Eduardo Menga, este com 70 anos, ou seja, nascido em 1954, e observando também os setentões com quem telefono no meu trabalho de telemarketing , meu atual emprego, fico refletindo sobre quem nasceu nos anos 1950 no Brasil. Da parte dos bem de vida, o empresário Eduardo Menga havia sido, há 20 anos, um daqueles "coroas" que apareciam na revista Caras junto a esposas lindas e mais jovens, a exemplo de outros como Almir Ghiaroni, Malcolm Montgomery, Walter Mundell e Roberto Justus. Eles eram os antigos "mauricinhos" dos anos 1970 que simbolizavam a "nata" dos que nasceram nos anos 1950 e que, nos tempos do "milagre brasileiro", eram instruídos a apenas correr atrás do "bom dinheiro", como a própria ditadura militar recomendava aos jovens da época: usar os estudos superiores apenas como meio de buscar um status profissional

ADORAÇÃO AO FUTEBOL É UM FENÔMENO CUJO MENOS BENEFICIADO É O TORCEDOR

Sabe-se que soa divertido, em muitos ambientes de trabalho, conversar sobre futebol, interagir até com o patrão, combinando um encontro em algum restaurante de rua ou algum bar bastante badalado para assistir a um dito "clássico" do futebol brasileiro durante a tarde de domingo. Sabe-se que isso agrega socialmente, distrai a população e o futebol se torna um assunto para se falar para quem vive de falta de assunto. Mas vamos combinar que o futebol, apesar desse clima de alegria, é um dos símbolos de paixões tóxicas que contaminam o Brasil, e cujo fanatismo supera até mesmo o fanatismo que já existe e se torna violento em países como Argentina, Inglaterra, França e Itália. Mesmo o Uruguai, que não costuma ter essa fama, contou com a "contribuição" violenta dos torcedores do Peñarol, que no Rio de Janeiro causaram confusão, vandalismo e saques, assustando os moradores. A toxicidade do futebol é tamanha que o esporte é uma verdadeira usina de super-ricos, com dirigente

A LUTA CONTRA A ESCALA 6X1

Devemos admitir que uma parcela das esquerdas identitárias, pelo menos da parte da deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), se preocupa com as pautas trabalhistas, num contexto em que grande parte das chamadas "esquerdas médias" (nome que eu defino como esquerdismo mainstream ) passam pano no legado da "Ponte para o Futuro" de Michel Temer, restringindo a oposição ao golpe de 2016 a um derivado, o circo do "fascismo-pastelão" de Jair Bolsonaro. Os protestos contra a escala 6x1, que determina uma jornada de trabalho de seis dias por semana e um de descanso, ocorreram em várias capitais brasileiras, como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Salvador e Porto Alegre, e tiveram uma repercussão dividida, mesmo dentro das esquerdas e da direita moderada. Os protestos foram realizados pelo Movimento Vida Além do Trabalho (VAT). A escala 6x1, junto ao salário 100% comissionado de profissões como corretor de imóveis - que transformam a remuneração em algo tão

"BALADA": UMA GÍRIA CAFONA QUE NÃO ACEITA SUA TRANSITORIEDADE

A gíria "balada" é, de longe, a pior de todas que foram criadas na língua portuguesa e que tem a aberrante condição de ter seu próprio esquema de marketing . É a gíria da Faria Lima, da Jovem Pan, de Luciano Huck, mas se impõe como a gíria do Terceiro Reich. É uma gíria arrogante, que não aceita o caráter transitório e grupal das gírias. Uma gíria voltada à dance music , a jovens riquinhos da Zona Sul paulistana e confinada nos anos 1990. Uma gíria cafona, portanto, que já deveria ter caído em desuso há mais de 20 anos e que é falada quase que cuspindo na cara de outrem. Para piorar, é uma gíria ligada ao consumo de drogas, pois "balada" se refere a um rodízio de ecstasy, a droga alucinógena da virada dos anos 1980 para os 1990. Ecstasy é uma pílula, ou seja, é a tal "bala" na linguagem coloquial da "gente bonita" de Pinheiros e Jardins que frequentava as festas noturnas da Zona Sul de São Paulo.  A gíria "balada", originalmente, era o

DERROTA DAS ESQUERDAS É O GRITO DOS EXCLUÍDOS ABANDONADOS POR LULA

POPULAÇÃO DE RUA MOSTRA O LADO OBSCURO DO BRASIL QUE NÃO APARECE NA FESTA IDENTITÁRIA DO LULISMO. A derrota das esquerdas nas recentes eleições para prefeitos em todo o Brasil está sendo abastada pelas esquerdas médias, que agora tentam investir nos mesmos apelos de sempre, os "relatórios" que mostram supostos "recordes históricos" do governo Lula e, também, supostas pesquisas de opinião alegando 60% de aprovação do atual presidente da República. Por sorte, a burguesia de chinelos que apoia Lula tenta convencer, através de sua canastrice ideológica expressa nas redes sociais, de que, só porque tem dinheiro e conseguem lacrar na Internet, está sempre com a razão, e tudo que não corresponder à sua atrofiada visão de mundo não tem sentido. A realidade não importa, os fatos não têm valor, e a visão realista do cotidiano nas ruas vale muito menos do que as narrativas distorcidas compartilhadas nas redes sociais. Por isso, não faz sentido Lula ter 60% de aprovação conform

SAI O FALSO PROFETA, ENTRA O FALSO DRAMATURGO

Enquanto muitos se preocupam com pastores com camisas de colarinho e gravatas pedindo, aos berros, para que os fiéis ofereçam até seus eletrodomésticos para as igrejas neopentecostais, o perigo maior simplesmente não é sentido por conta do gosto de mel e do aparato de falsa humildade e suposta simplicidade. Nosso Brasil está atrasado, apesar de uma elite de abastados, tomada de profundo complexo de superioridade em níveis psicologicamente preocupantes, jurar de pés juntos que o país irá se tornar uma nação desenvolvida no final de 2026. Nem em sonhos e muito menos em nenhum esforço de transformar os mais dourados sonhos lulistas em realidade. Uma prova do atraso brasileiro é que há uma dificuldade em níveis preocupantes de compreender que o pior do obscurantismo religioso não se limita a extorsões da fé manipuladora nos meios de comunicação. E vamos combinar que, embora sejam verídicas das denúncias, o obscurantismo neopentecostal anda sendo superestimado como se nele encerrassem as ma

SOCIEDADE COMEÇA A SE PREOCUPAR COM A "SERVIDÃO DIGITAL" DOS ALUNOS

No último fim de semana, a professora e filósofa Marilena Chauí comparou o telefone celular a um objeto de servidão, fazendo um contundente comentário a respeito do vício das pessoas verem as redes sociais. Ela comparou a hiperconectividade a um mecanismo de controle, dentro de um processo perigoso de formação da subjetividade na era digital, marcada pela necessidade de "ser visto" pelos outros internautas, o que constantemente leva a frustrações que geram narcisismos, depressão e suicídios. A dependência do reconhecimento externo faz com que as redes sociais encontrem no Brasil um ambiente propício dessa servidão digital, que já ocorria desde os tempos do Orkut, em 2005, onde havia até mesmo os "tribunais de Internet", processos de humilhação de quem discorda do que "está na moda". Noto essa obsessão das pessoas em brincarem de serem famosas. Há uma paranoia de publicar coisas no Instagram. Eu tenho um perfil "clandestino" no Instagram, no qual

JOO TODDYNHO NOS LEMBRA QUE O "FUNK CARIOCA" É "IRMÃO" DE JAIR BOLSONARO

A postura direitista que a funqueira Jojo Toddynho assumiu, apoiando Jair Bolsonaro, esbanjando reacionarismo e tudo, pode causar grande surpresa e até decepção por parte daqueles que acreditam na ingênua, equivocada porém dominante ideia de que o "funk" é um movimento culturalmente progressista. Vendo que Jojo Toddynho, a one-hit wonder  brasileira do sucesso "Que Tiro é Esse?" - que, nos últimos momentos da "campanha contra o preconceito" da intelligentzia  do nosso país, chegou a ser comparada, tendenciosamente, com "Gaúcho (Corta-Jaca)", de Chiquinha Gonzaga - , tornou-se garota-propaganda da pavorosa rede de lojas Havan, as pessoas dormem tranquilas achando que a funqueira é uma "estranha no ninho", ao lado de nomes como Nego do Borel, Pepê e Nenem e o "divertido" Buchecha. E aí o pessoal vai acreditando na narrativa, carregada de muito coitadismo, de que o "funk" é ideologicamente "de esquerda", que o